SENHOR PRESIDENTE

Jo�o Ubaldo Ribeiro

Senhor Presidente,

Antes de mais nada, quero tornar a parabeniz�-lo pela sua vit�ria estrondosa nas urnas. Eu n�o gostei do resultado, como, ali�s, n�o gosto do senhor, embora afirme isto com respeito. Explicito este meu respeito em dois motivos, por ordem de import�ncia. O primeiro deles � que, como qualquer semelhante nosso, inclusive os milh�es de miser�veis que o senhor volta a presidir, o senhor merece intrinsecamente o meu respeito. O segundo motivo � que o senhor incorpora uma institui��o basilar de nosso sistema pol�tico, que � a Presid�ncia da Rep�blica, e eu devo respeito a essa institui��o e jamais a insultaria, fosse o senhor ou qualquer outro seu ocupante leg�timo. Talvez o senhor nem leia o que agora escrevo e, certamente, estar� se lixando para um besta de um assim chamado intelectual, mero autor de uns pares de livros e de uns milhares de cr�nicas que jamais lhe causar�o mossa. Mas eu quero dar meu recadinho.

Respeito tamb�m o senhor porque sei que meu respeito, ainda que talvez seja relutante privadamente, me � retribu�do e n�o o faria abdicar de alguns compromissos com que, justi�a seja feita, o senhor h� mantido em sua vida p�blica - o mais importante dos quais � com a liberdade de express�o e opini�o. O senhor, contudo, em quem antes votei, me traiu, assim como traiu muitos outros como eu. Ainda que obscuramente, sou do mesmo ramo profissional que o senhor, pois ensinei ci�ncia pol�tica em universidades da Bahia e sei que o senhor � um soci�logo med�ocre, cujo livro O Modelo Pol�tico Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades que n�o fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociol�gico. Mas, como dizia antigo personagem de J� Soares, eu acreditei.

O senhor entrou para a Hist�ria n�o s� como nosso presidente, como o primeiro a ser reeleito. Parab�ns, outra vez, mas o senhor nos traiu. O senhor era admirado por gente como eu, em fun��o de uma postura �tica e pol�tica que o levou ao ex�lio e ao sofrimento em nome de causas em que acredit�vamos, ou pelo menos n�s pens�vamos que o senhor acreditava, da mesma forma que hoje acha mais conveniente professar cren�a em Deus do que neg�-la, como antes. Em determinados momentos de seu governo, o senhor chegou a fazer cr�ticas, �s vezes acirradas, a seu pr�prio governo, como se n�o fosse o senhor seu mandat�rio principal. O senhor, que j� passou pelo rid�culo de sentar-se na cadeira do prefeito de S�o Paulo, na convic��o de que j� estava eleito, hoje pensa que � um pol�tico competente e, possivelmente, tem Maquiavel na cabeceira da cama. O senhor n�o � uma coisa nem outra, o buraco � bem mais embaixo. Pol�tico competente � Ant�nio Carlos Magalh�es, que manda no Brasil e, como j� disse aqui, se ele fosse candidato, votaria nele e lhe continuaria a fazer oposi��o, mas pelo menos ele seria um presidente bem mais macho que o senhor.

N�o gosto do senhor, mas n�o tenho �dio, � apenas uma diverg�ncia hist�rico-glandular. O senhor assumiu o governo em cima de um plano financeiro que o senhor sabe que n�o � seu, at� porque lhe falta compet�ncia at� para entend�-lo em sua inteireza e hoje, levado em grande parte por esse plano, nos governa novamente. Como j� disse na semana passada, n�o lhe quero mal, desejo at� grande sucesso para o senhor em sua pr�xima gest�o, n�o, claro, por sua causa, mas por causa do povo brasileiro, pelo qual tenho tanto amor que agora mesmo, enquanto escrevo, estou chorando.

Eu ouso lembrar ao senhor, que tanto brilha, ao falar franc�s ou espanhol (ingl�s eu falo melhor, pode crer) em suas idas e vindas pelo mundo, � nossa custa, que o senhor � o presidente de um povo miser�vel, com umas das mais in�quas distribui��es de renda do planeta. Ouso lembrar que um dos feitos mais memor�veis de seu governo, que ora se passa para que outro se inicie, foi o socorro, igualmente a nossa custa, a bancos ladr�es, cujos respons�veis permanecem e permanecer�o impunes. Ouso dizer que o senhor n�o fez nada que o engrande�a junto aos cora��es de muitos compatriotas, como eu. Ouso recordar que o senhor, numa demonstra��o inacredit�vel de insensibilidade, aconselhou a todos os brasileiros que fizessem check-ups m�dicos regulares. Ouso rememorar o senhor chamando os aposentados brasileiros de vagabundos. Claro, o senhor foi consagrado nas urnas pelo povo e n�o serei eu que terei a arrog�ncia de dizer que estou certo e o povo est� errado. Como j� pedi na semana passada, Deus o assista, presidente. Paradoxal como pare�a, eu tor�o pelo senhor, porque tor�o pelo povo de famintos, esfarrapados, humilhados, injusti�ados e desgra�ados, com o qual o senhor, em seu pal�cio, n�o convive, mas eu, que inclusive sou nordestino, conhe�o muito bem. E ouso recear que, depois de novamente empossado, o senhor minta outra vez e traga tantas ou mais desditas � classe m�dia do que seu antecessor que hoje vive em Miami.

J� trocamos duas ou tr�s palavras, quando nos vimos em solenidades da Academia Brasileira de Letras. Se o senhor, ao por acaso estar l� outra vez, dignar-se a me estender a m�o, eu a apertarei deferentemente, pois n�o desacato o presidente de meu pa�s. Mas n�o � necess�rio que o senhor passe por esse constrangimento, pois, do mesmo jeito que o senhor pode fingir que n�o me v�, aho mesma coisa posso eu fazer. E, falando na Academia, me ocorre agora que o senhor venha a querer coroar sua carreira de gl�rias entrando para ela. Sou um pouco mais mocinho do que o senhor e n�o tenho nenhum poder, a n�o ser afetivo, sobre meus queridos confrades. Mas, se na ocasi�o eu tiver algum outro poder, o senhor s� entra l� na minha vaga, com direito a meu lugar no mausol�u dos imortais.



A  CARTA  DO  JO�O

Claudio Mello e Souza

Claudio Mello e Souza no Flor do Leblon. Foto de Paulo Afonso Teixeira

J� est�vamos no segundo chope quando ele chegou. 

No Flor do Leblon, presidido como sempre pelo doce e desp�tico Carlinhos Judeu, tent�vamos, sem muito sucesso, tratar dos assuntos da semana, j� que s� nos reencontramos aos s�bados e domingos. 

E ele chegou como sempre, andar descansado, de eterno rec�m-chegado da Bahia. Foi festejado e aplaudido. Acabara de livrar-se de uma injusta armadilha da vida. O seu esp�rito delicado e forte vencera de novo. 

E, como sempre, eu o saudei, exclamando o seu nome completo:

Jo�o Ubaldo Ribeiro!

Mas n�o chegou como sempre. Em vez do sorriso claro e farto, havia um c�u encoberto, como o daquele s�bado de ventos ainda molhados pela chuva recente. Coisas da travessa La ni�a, que anda a resfriar os oceanos outrora pac�ficos. De repente, estendeu-me tr�s laudas tiradas pouco antes do seu computador. � medida que as lia, tive de me controlar para n�o tremer e n�o chorar. Estava lendo em primeira m�o um depoimento hist�rico, a j� famosa carta de cr�tica a Fernando Henrique. Impressionaram-me a coragem de pensar, a eleg�ncia de dizer, a perfei��o de escrever e a independ�ncia de ser. � documento que desonra os que o censuraram "por ordens superiores", e que � um comovente viva ao povo brasileiro.

Jo�o Ubaldo Ribeiro no Flor do Leblon. Foto de Paulo Afonso Teixeira