UMA BELEZA PARA SER VISTA DO ALTO

Zuenir Ventura

O avi�o para S�o Paulo acabara de decolar e o comandante resolveu pegar o litoral para fazer com certeza uma esp�cie de "rota do deslumbramento". Deve ter sido de prop�sito. Talvez ele tivesse percebido a fascina��o da paisagem �quela hora. Interrompi a leitura dos jornais para ver o espet�culo.

Eu estava lendo o relato do fim do mundo --- pelo menos do mundo financeiro. "A economia russa entra em colapso", dizia um jornal; "A crise da R�ssia causa p�nico", dizia outro. O rublo, desvalorizado, bancos fechados, empresas falidas, o pa�s se desintegrando, filas, o caos. O pior � que essa na��o em desespero, moribunda, tem guardado em algum lugar mais de 20 mil ogivas nucleares. Pode morrer atirando.

Sou do tempo em que a subvers�o mundial era sempre atribu�da ao "ouro de Moscou". Temia-se que o imp�rio sovi�tico tomasse conta do planeta. A paran�ia de direita e a ingenuidade de esquerda convergiam para a mesma conclus�o: "O mundo marcha para o socialismo", dizia-se ent�o. Os militares brasileiros deram um golpe cruento, torturaram, mataram, exilaram, para evitar o "perigo vermelho".

Agora a hist�ria ria ironicamente. O que n�o fora feito em 70 anos de comunismo estava sendo feito em sete de capitalismo: a R�ssia finalmente punha em risco a estabilidade global. N�o ia mais dominar pela for�a e pela opul�ncia, como sempre se temeu; amea�ava, sim, pela escassez, arrastar todo mundo consigo para o buraco.

L� fora, no horizonte, o que se oferecia era o oposto dessa atmosfera de apocalipse aqui de dentro. Parecia uma paisagem rec�m-criada, virgem, primal. Um espet�culo como h� muito n�o se via. O sol tinha se posto deixando um rastro de sangue ou de fogo que demarcava os limites entre o c�u e o mar. J� n�o era mais dia e ainda n�o era noite. As pessoas colavam o rosto na janela e perdiam a fala ou ficavam repetindo exclama��es: "Que beleza!", "Que cidade". N�o havia d�vida, est�vamos sobrevoando o para�so.

Pouco antes, a caminho do Santos Dumont, eu passara pelo posto de gasolina da Lagoa onde o presidente da Sony levara cinco tiros. Saiu de carro, parou para tomar sorvete, foi rendido, n�o reagiu, mas n�o adiantou nada. Os bandidos atiraram assim mesmo.

� porque estava num carro importado, alegou-se, como se a p� a gente estivesse a salvo. N�o est�, ningu�m est�: a qualquer hora, em qualquer lugar. Eu, por exemplo, me disfar�ava de pobre para andar no cal�ad�o, mas agora, depois do elogio presidencial � pobreza, tenho medo de ser assaltado, n�o por me confundirem com algum rico, mas justamente por inveja � minha pobreza.

Mesmo vestido de professor, uma chegada at� a esquina depois do jantar, um r�pido e inocente passeio, uma volta no quarteir�o, tudo pode ser fatal.

Solid�rio com a desgra�a russa, n�o podia deixar de pensar tamb�m na nossa trag�dia l� embaixo: gra�as aos nossos governantes, o Rio amea�a se tornar uma in�til paisagem. Essa cidade sensorial, t�til, que ao contr�rio de S�o Paulo e a exemplo de Paris convida ao contato f�sico, parece estar sendo condenada a ser vista apenas de cima ou de longe, a uma dist�ncia segura, como se fosse apenas um cart�o-postal do terror e do �xtase.

Como cantou Fernanda Abreu, a sua cidade-maravilhosa virou o "purgat�rio da beleza e do caos".

(24/08/1998)

Foto a�rea de Daniel Carneiro

 

Zuenir Ventura - Cr�nicas de um Fim de S�culo - Editora Objetiva Ltda 

Cronista das grandes cidades, o jornalista Zuenir Ventura traz em seu texto saboroso e inteligente os conflitos e sonhos do homem comum. Na virada do s�culo, uma reflex�o sobre a exist�ncia humana: o homem e seus medos urbanos.


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06-jun-2008