O RIO DO MEU TEMPO

Heloisa Seixas

A cidade sabia tamb�m ser acolhedora e mansa, envolvendo quem a amasse



O Rio do meu tempo tinha cor e luz e cheiros, como em lugar algum.

Tinha manh�s de outono em que o sol vencia o ar fino e tocava a pele devagar, numa car�cia. Tinha tamb�m tardes de primavera, em que floriam os espinheiros das pra�as, espalhando na atmosfera um cheiro de jasmim. Tinha buganv�lias, flamboyants e amendoeiras. E coqueiros enfileirados junto � orla, cujas palmas delicadas, mexidas pela brisa, se recortavam diante do horizonte lil�s, como num cen�rio de filme. O Rio do meu tempo tinha montanhas, cadeias e mais cadeias de montanhas esbatendo-se em degrad� pela paisagem afora e ainda um p�r do sol que no ver�o deixava um rastro de cobre na areia molhada, transformando em silhuetas os retardat�rios das praias, que se deixavam ficar junto �s ondas at� a �ltima r�stia de luz. Ah, e tinha mar, um mar enorme no Rio do meu tempo.

O Rio do meu tempo tinha tamb�m sons, murm�rios, batuques. Choros e sambas em velhos casar�es, burburinhos sem fim nas madrugadas sob os Arcos, risadas nas portas dos botequins, onde os embates sobre futebol tinham sabor de cerveja, de fritura e churrasquinho. O Rio do meu tempo tinha a nova Bossa, que era mais que Nova e reinava em templos com nome de maestro, de sons modernos ou finas misturas. M�sica, m�sica, muita m�sica � � o que tinha o Rio do meu tempo. Sem falar no carnaval, porque a� j� � covardia. O Rio do meu tempo sabia ser espalhafatoso, quando fazia de sua �pera popular um milagre gigantesco, com dezenas de milhares de atores em a��o. Ou ainda quando deixava escoar pelas ruas uns rios brancos, feitos n�o de �gua mas de gente, para saudar na praia o novo ano. Mas a cidade sabia tamb�m ser acolhedora e mansa, envolvendo quem a amasse em pequenos ref�gios, em seus caf�s, restaurantes, em suas livrarias. Eram coloridas e animadas as livrarias do Rio, e nelas nos deix�vamos ficar por horas e horas, folheando os livros sem pressa, conversando nas mesas de seus caf�s, encontrando amigos.

Ah, como era bom o Rio do meu tempo.

� claro que havia, tamb�m, problemas. Corrup��o, drogas, viol�ncia. Muita viol�ncia. Mas ainda assim o Rio do meu tempo era maravilhoso. E n�s n�o pod�amos deixar que as not�cias ruins tomassem todo o espa�o, n�o pod�amos deixar que o p�nico crescesse e gerasse mais p�nico, numa escalada sem fim. Sab�amos bem que �ramos uma caixa de resson�ncia, tudo o que acontecia em nossa cidade repercutia mais. Precis�vamos fazer alguma coisa, mostrar a n�s mesmos nossos encantos, para nunca esquec�-los. Diz�-los em voz alta como a recitar um mantra, com o qual ganhar�amos for�a para vencer o medo. Porque o pior de tudo era o medo. E porque era tempo � sempre seria � de salvar aquela cidade feita de beleza e pavor.

Era assim, no Rio do meu tempo � esse tempo chamado agora.