NA GL�RIA

Heloisa Seixas

Apesar de todo o charme, a decad�ncia da regi�o salta aos olhos


Outro dia, saindo de um sebo de livros na Rua do Catete, decidi ir caminhando at� a Lapa, para almo�ar em algum daqueles simp�ticos restaurantes ao redor dos Arcos. Com essa decis�o, tive a oportunidade de andar a p� pela Gl�ria, coisa que nunca fa�o.

Depois de cruzar a Rua Bento Lisboa, segui pela cal�ada da esquerda e, logo depois de avistar o rel�gio da Gl�ria, passei pela frente do pr�dio onde morou Pedro Nava � e em cuja porta, atravessado nos degraus da entrada, dormia profundamente um mendigo. Enquanto andava, observava � minha direita, para al�m da pista de carros, a beleza degradada da mureta que antigamente dava para o mar e pensava num Rio cheio de lampi�es antigos, chafarizes e jardins parisienses. Mas logo sacudi aqueles pensamentos de passado, evocando um exemplo de Rio eterno e maravilhoso: a lembran�a de que ali, sob a sombra das �rvores seculares que formam uma cobertura filigranada, realiza-se nos fins de semana uma simp�tica feira onde um grupo toca chorinho entre legumes, verduras e flores. Nada mais carioca.

Segui em frente. Mas, apesar de todo o charme, a decad�ncia da regi�o ia me saltando aos olhos � medida que eu andava. Nas portarias dos pr�dios antigos, que na certa escondem aqueles lindos apartamentos de p�-direito alto e sal�es com arcadas, eu via o m�rmore j� gasto, os apliques de bronze comidos pelo tempo, as fachadas repletas de picha��es. � pena. Mas, ainda uma vez, procurei me concentrar na beleza � ineg�vel � daquele bairro t�o cheio de hist�ria e hist�rias.

At� que, a uma certa altura, naquela mesma cal�ada, passei diante de um chafariz antigo, completamente abandonado. Parei. Os tanques de pedra, secos, estavam cheios de lixo at� a boca, a imund�cie chegando a tal ponto que era quase imposs�vel divisar o chafariz em meio ao monturo. � frente das paredes de granito, imensamente gastas e imundas, camel�s vendiam bugigangas, balas e chicletes em duas carrocinhas improvisadas. Por tr�s do que restava do antigo chafariz, um peda�o de morro, com um resto de vegeta��o, era a lembran�a p�lida de um tempo em que certamente por ali descera um curso de �gua l�mpida, que se acumulava nos bojos dos tanques, onde era colhida pelas mucamas. Que o chafariz n�o mais servisse a tais prop�sitos, at� porque felizmente j� n�o h� mucamas e a �gua nos chega agora pelas torneiras, � mais do que compreens�vel � � l�gico. Mas que pelo menos se preservasse melhor aquele monumento de pedra, testemunha do passado num pa�s que sabidamente n�o tem mem�ria.

Dando de ombros, dei mais uns passos para me afastar dali, tentando outra vez me concentrar nas belezas do caminho � que no Rio, apesar de tudo, s�o sempre in�meras �, quando na parede junto ao chafariz vi uma velha placa de bronze, t�o negra de fuligem que mal se podia ler sua inscri��o. Cheguei mais perto e n�o pude deixar de rir quando, apertando os olhos, consegui afinal constatar a suprema ironia do que ali estava escrito: "Patrim�nio Hist�rico Nacional".