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Heloisa Seixas
Lembro-me que naquela noite acordei sem motivo algum. Acordei, simplesmente, sem saber por qu�.
No instante exato do acordar, n�o houve susto. O sobressalto veio depois. Olhei para a parede do
meu quarto e vi que estava tomada por uma sombra incomum. Uma sombra vermelha, cor de fogo.
Sempre achei que todas as sombras eram iguais, cinzentas, negras. Jamais imaginei que pudesse haver
uma sombra cor de fogo. Intrigada, com uma ponta de medo, levantei da cama e fui at� a janela.
E ent�o fui atra�da pela luz.
Parece o in�cio de um conto de terror - e, de certa forma, �. Foi assim que me senti naquela
madrugada distante em que vi a Favela da Praia do Pinto pegar fogo. As chamas eram t�o tremendas
que projetavam sobre a parede do meu quarto um reflexo avermelhado, um p�r-do-sol no meio da noite.
Todo o terreno hoje ocupado pela Selva de Pedra estava pegando fogo. N�o havia um s� ponto onde n�o
brilhassem as labaredas, projetando-se para o alto, devorando o c�u, em meio ao tiroteio dos buj�es
de g�s que explodiam.
Ao ver a cena, meu cora��o se contraiu. Adolescente ainda, tive a no��o exata do que significava aquele
espet�culo terr�vel, pensando, angustiada, nas pessoas que com certeza tentavam escapar do fogo. Horas depois,
quando o dia raiasse, outro espet�culo me espantaria. A multid�o compacta enchendo as ruas em torno da favela
destru�da, carregando nas costas seus m�veis, seus pertences, num movimento febril que era a perfeita reconstitui��o
de um gigantesco formigueiro.
Ao fim de tudo, manh� j� alta, quando olhei o imenso quadrado cinzento que restara no lugar da favela,
senti uma estranha sensa��o de vazio. Mas ela veio acompanhada de uma lembran�a boa. A recorda��o de
outro espa�o, grande como aquele, j� ent�o desaparecido: o terreno baldio onde armavam o circo,
quando eu era crian�a. Ficava no quarteir�o entre o Jardim de Al� e a Almirante Pereira Guimar�es,
em plena Ataulfo de Paiva, que eu atravessava de m�os dadas com a bab�, rumo ao mundo encantado e
assustador que a lona escondia. Por um segundo, cheguei a pensar no circo pousando outra vez no Leblon,
no imenso terreno deixado vago pela favela calcinada. Mas logo dei de ombros, sorrindo. Bobagem. Eu n�o
era mais crian�a.
Mas � engra�ado. Desde ent�o, essas duas lembran�as t�o d�spares - do fogo e do circo - andam sempre
juntas dentro de mim. Dois terrenos vazios que, como retalhos quadrados numa colcha, ajudam a compor
o cen�rio desse Leblon de onde nunca sa�.
| Esta foto
panor�mica do Jardim de Al�, no final da d�cada de 50, mostra a Cruzada
S�o Sebasti�o, o Conjunto dos Jornalistas (o �ltimo bloco ainda estava
em constru��o) e as favelas erradicadas (Praia do Pinto, Ilha das Dragas
e Pedra do Baiano). O circo est� armado na esquina da Av. Afr�nio de
Melo Franco, onde hoje est� o pr�dio n� 80, da Av. Ataulfo de Paiva. |
Publicado no "Jornal do Brasil" - "Estilo de Vida" - 01/08/1999
Heloisa Seixas �
escritora e moradora (apaixonada) do Leblon. Publica suas cr�nicas na se��o
"Contos M�nimos", da "Revista de Domingo" do "Jornal
do Brasil".
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