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Ta� uma coisa que nenhum b�pede dotado de um m�nimo de sensibilidade precisaria
explicar: por que odeia a guerra. J� li muitos artigos e alguns tratados
tentando justificar a guerra � n�o necessariamente esta, mas qualquer guerra;
n�o necessariamente neste s�culo, mas em �pocas em que ainda se consideravam
�her�icos� os feitos do campo de batalha. N�o adianta. Nada me convence. N�o h�
argumento que, na minha cabe�a, justifique um monte de desconhecidos se matando
uns aos outros, apenas porque algu�m, que provavelmente vai ficar bem a salvo da
matan�a geral, assim o decidiu. Para mim, a guerra � qualquer guerra � ser�
sempre a prova mais completa de que falhamos por completo como os animais
superiores que pretendemos ser, e que �civiliza��o� n�o passa de um conceito
muito bonito, mas cada vez mais distante das nossas vidas.
Al�m das grandes raz�es �bvias, h� uma outra raz�o pela qual odeio a guerra �
seja a guerra declarada do Iraque, seja a nossa guerra carioca n�o declarada de
todos os dias, que dona Ros�ngela parece achar um fato perfeitamente normal. �
que, a partir do momento em que uma guerra � anunciada, ou come�a a tomar forma,
o nosso pensamento � seq�estrado. O meu, pelo menos, est� preso �s orgias de
viol�ncia, triste, de asa cortada. Ando num estado de preocupa��o permanente,
quase incapaz de me afastar dos notici�rios e do computador, onde, em vez de
percorrer os blogs amigos e brincar com os Sims ou o xadrez, fico
compulsivamente procurando mais informa��es. Praticamente deixei de assistir a
v�deos e DVDs e a pilha de livros ao lado da cama est� intocada; a seu lado,
cresce a pilha de recortes, cadernos especiais, prints de artigos
estrangeiros e coment�rios da web.
Troco id�ias com os amigos, e percebo que o desconforto n�o � paran�ia minha,
mas sensa��o geral. � como se as nossas vidas estivessem em suspenso,
acontecendo numa esp�cie de realidade paralela, em que tudo remete � guerra.
Tudo passa a ser secund�rio e adi�vel diante deste horror cont�nuo, diante do
choque e do pavor, diante das implica��es futuras que cada palavra imbecil
pronunciada em Washington (ou no Rio) pode vir a ter. Um trocou as sauda��es de
h�bito do e-mail por �O mundo vai acabar�; outra deixa um coment�rio, manda um
beijo e acrescenta: �Sabe que me sinto t�o desconfort�vel, que assinar com
beijos parece rid�culo.�
Este � o problema. Tudo parece rid�culo diante da guerra. As nossas afli��es
cotidianas se tornam rid�culas, as nossas preocupa��es corriqueiras se tornam
rid�culas, mesmo as nossas piores afli��es se tornam rid�culas. Um dos meus
gatinhos favoritos morreu h� tr�s semanas. Sinto falta dele todos os dias, era o
meu companheiro de trabalho, sempre em cima da escrivaninha disputando espa�o
com o mouse e o teclado; mas l� no fundo me censuro por sofrer essa perda,
porque, enfim, ela tamb�m me parece rid�cula diante de uma guerra. Subitamente,
tudo o que faz a nossa humanidade, os nossos sentimentos e as nossas delicadezas
passa a ser rid�culo. Como mandar um abra�o? Como se despedir com um beijo? Como
chorar um gatinho?
* * *
Meu av� lutou durante a Primeira Guerra e contava hist�rias das trincheiras. Uma
vez seu regimento passou meses num ponto qualquer do mapa onde nada acontecia �
eles do ex�rcito austro-h�ngaro de um lado, os inimigos russos do outro. N�o
lembro dos detalhes, se acabou muni��o ou se houve um claro nos planos de
batalha, mas o fato � que, com a espera, ficaram amigos. Os soldados dos dois
lados sa�am das respectivas trincheiras, se encontravam na terra de ningu�m �
que eu, quando crian�a, achava sempre algo extraordin�rio, assombroso: terra
de ningu�m � bebiam, comemoravam juntos a chegada de not�cias de casa. Um
dia, inesperadamente, ouviu-se um intenso tiroteio no lado dos russos. Os do meu
av�, surpresos, recolheram-se � sua trincheira e pensavam no que fazer quando
apareceu um dos russos:
� Imaginem que mandaram para c� uns caras novos,
que queriam fazer guerra contra voc�s...! Mas j� est� tudo bem, demos um jeito
neles.
* * *
Minha filha, que mora na Lagoa e trabalha na Barra, anda apavorada e carrega uma
�bolsa cenogr�fica� com algumas coisas bobas dentro para entregar para os
assaltantes; a bolsa de verdade fica no porta-malas. Isso porque � uma mo�a
otimista, que acha que n�o v�o levar o carro. Meu filho mora nos Estados Unidos
e est� desesperado. Dia desses escreveu:
�Ontem � noite eu estava assistindo � cobertura dos ataques. Eles mostravam uma
c�mera congelada na paisagem noturna de Bagd�. Volta e meia passava um carro, um
�nibus ou uma pessoa qualquer. Do meio do nada desandei a chorar e n�o conseguia
parar. S� pensando nas in�meras fam�lias, parecidas com a minha, duas
criancinhas dormindo, mulher gr�vida, etc. Alheios a tudo o que est� acontecendo
at� que um Tomahawk lhes ca�a na cabe�a. Um pouco depois mostraram um batalh�o
daqui de Michigan pronto pra embarcar. Os soldados ainda cheios de espinhas na
cara, 18, 19 anos. Gente que foi t�o manipulada pelos Rumsfelds da vida quantos
os iraquianos pelo Saddam. Fiquei pensando nos pais de alguns desses que v�o ter
que receber o que restou dos filhos numa bolsa pl�stica. Mais choro. Horr�vel
pra todo mundo.�
* * *
Apesar de tudo, a praia continua. Linda.
O GLOBO - abril de 2003
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