Uma guerra p�s-moderna


Affonso Romano de Sant'Anna

Todo mundo sabe o que � uma guerra. Mas nem todo mundo sabe o que � p�s-modernismo. Bush, por exemplo, � p�s-moderno, sem o saber. E se voc� n�o sabe exatamente o que � p�s-moderno, n�o se avexe. Os te�ricos tamb�m n�o est�o muito seguros sobre isto. � comum encontrarmos nos bons ensaios a respeito (por exemplo, �Po�tica do p�s-modernismo�, de Linda Hutcheon, ed. Imago), a afirma��o: �O p�s-moderno � um fen�meno contradit�rio, que usa e abusa, instala e depois subverte, os pr�prios conceitos que desafia�.

Esse termo � p�s-modernismo � come�ou a ser usado mais insistentemente nas �ltimas d�cadas do s�culo passado. Vinha da arquitetura que reaproveitava formas cl�ssicas. Em breve, o termo transbordou, atingiu tudo: das artes pl�sticas � literatura, e passou a ser usado para explicar a ideologia dominante, a cultura contempor�nea e a era da globaliza��o. Logo logo estudos sobre p�s-modernismo viraram moda universit�ria, come�aram a render bolsas de estudo e pesquisa, e autores, que precisam de r�tulos para aparecerem, come�aram a se auto-intitularem p�s-modernos.

Bush, como lhes disse, � p�s-moderno sem o saber. N�o sei que curso ele fez l� no Texas. (Dizem que antes da Casa Branca ele nunca tinha ido � Europa). Por que ele seria p�s-moderno? Porque um dos tra�os da malfadada p�s-modernidade � o pastiche. Em arte se diz: fulano fez um pastiche de sicrano. Quer dizer: copiou, aproveitou o que j� existia, escondeu sob a m�scara do outro a sua prec�ria criatividade. Pois Bush filho � primeiramente o pastiche do Bush pai. O pastiche � a impot�ncia travestida de pot�ncia. A vontade de ser aquilo que n�o se �. O pastiche � o oposto da par�dia, esta sim, uma revivifica��o da linguagem. Enfim, a arte das �ltimas d�cadas, confessadamente, vive recorrendo ao pastiche como outros recorrem ao viagra.

Algumas charges, ilustra��es e textos na imprensa mostram como Bush � pastiche tamb�m de um C�sar levando a pax romana (ou guerra?) a todas as prov�ncias do imp�rio. Nessa linha, Norman Mailer escreveu que Bush quer prolongar o sonho imperial americano para o s�culo XXI. Mas como quem quer repetir a Hist�ria acaba fazendo Hist�ria de segunda m�o, ou pastiche, os americanos est�o reencenando o neocolonialismo do s�culo XIX e exercendo um imperialismo tardio. Bush e Blair pensam estar repetindo Roosevelt e Churchill, mas est�o mais pr�ximos de Franco, Mussolini e h� quem bote neles o bigodinho de Hitler.

Na verdade, essa guerra no Iraque � o conflito entre o p�s-moderno (Bush) e o p�s-antigo (Saddam). Ambos s�o um blefe, s�o pastiche. Assim como Bush pensa ser C�sar, Saddam pensa ser Nabudonosor. Bush estupidificou a democracia. Saddam barbarizou a Mesopot�mia.

Outra caracter�stica da p�s-modernidade � a �desterritorializa��o� dos indiv�duos e povos. Pessoas e culturas perdem suas ra�zes e ficam num del�rio deambulat�rio pelos shoppings e outros espelhos sem alma. E a globaliza��o quer isto. Que sejamos todos um mesmo e �nico mercado. Pessoas convertidas em consumidores, a aboli��o da consci�ncia cr�tica, a convers�o de todos em objetos. Ent�o, dando seq��ncia a essa ideologia, Bush acha que pode cortar as ra�zes de um povo que come�ou na Mesopot�mia, que teve em seu territ�rio a localiza��o do �den b�blico, da Torre de Babel, dos Jardins Suspensos da Babil�nia, etc. A�, voc� l� os jornais e v� os militares americanos, perplexos, dizendo: �Uai! Nos preparamos para lutar de um determinado jeito e esse povo aqui quer lutar de outro!�. Ou seja: voc� pega seus planos de guerra feitos nas salas de ar-refrigerado do Pent�gono e quer que funcionem no deserto iraquiano. Nisto a ideologia americana est� ilustrando um outro item da p�s-modernidade, que ignora o �contexto� em favor de uma ing�nua �descontextualiza��o�. Acredita-se, como ocorre em alguns exemplos art�sticos, que voc� pode �descontextualizar� um pa�s e �recontextualiz�-lo� ao seu modo. Ou, que podem chegar l� com uma �democracia� pronta, como um hamb�rger, e isto vai descer pela goela iraquiana. Como diria Fredric Jameson, isto � acreditar que o conte�do pode ser definitivamente suprimido em favor da forma, como se as culturas vivessem em livre flutua��o. Da� a surpresa de outro soldado confessando que essa guerra n�o � o �passeio� que lhe prometeram, e que n�o � �t�o f�cil conquistar uma na��o�.

Diante da �m�e de todas as bombas� � que lan�a fragmentos (e a fragmenta��o � outra ir�nica sindrome p�s-moderna), est�o os �homens-bomba�. A grande e a pequena fragmenta��o. A m�quina e a impessoalidade contra o indiv�duo e sua cren�a. A irracionalidade p�s-moderna, versus a irracionalidade p�s-antiga.

Por essas e por outras � que deveriam dar mais cursos de Hist�ria, de antropologia e de arte contempor�nea nos quart�is americanos. Uma das tolices do s�culo XX foi, atrav�s de silogismos fascinantes, anunciar a morte da Hist�ria, a morte da arte, a morte do homem. Pois a Hist�ria est� renascendo, a arte est� renascendo, o homem est� renascendo no cemit�rio de mortes anunciadas do finado s�culo. Essa guerra, pelo avesso, pode ser a contesta��o e o princ�pio do fim da globaliza��o e da cultura p�s-moderna que se comprazem no pastiche, na repeti��o in�cua, na valoriza��o da quantidade sobre a qualidade, no culto � imagem e ao simulacro em detrimento do real. Essa p�s-modernidade que descontextualiza as pessoas e desterritorializa as culturas.

Enfim, nessa batalha de textos e contextos, em que a p�s-modernidade, autofagicamente, desmoraliza os pr�prios conceitos que cria, devo convir que talvez a p�s-modernidade nem exista. Que, como disse o corajoso Michael Moore na festa do Oscar, estamos diante de um presidente fict�cio que cr� numa guerra fict�cia. Talvez a p�s-modernidade realmente n�o exista. E embora eu tenha falado de um conflito entre o p�s-moderno (Bush) e o p�s-antigo (Saddam), essa guerra, como todas as guerras, insere-se mesmo � no pr�-arcaico.

Publicado no GLOBO em 5 de abril de 2003