Amantes da Arte

Nei Lopes

Foi no Amantes da Arte que o Duduca conheceu a China. Ela de rabo-de-peixe e saia justa mostrando aquele tremendo tund�; ele de linho S-120 bem amarrotado, �s custas de um macete engra�ado paca
� deitar e ficar rolando na cama de terno, depois de j� prontinho pra sair pro baile.

Ali�s foi no Amantes da Arte que quase tudo come�ou, aconteceu e acabou. Foi l�, por exemplo, num baile em que se confraternizavam cabeleireiras e serventu�rios da justi�a, que Antonieta deu seus primeiros rodopios envolvida pelos bra�os e pelas mernas altamente competentes do Sabar�, ainda quase um rapazinho. Nesse baile, inclusive foi que o escrevente juramentado Eduardo Seabra Fagundes Lima e Silva, bacharel da turma de 48 da gloriosa Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, e nas bocas pra ser nomeado escriv�o, recebeu o t�tulo e o cognome que ostenta at� hoje � Edu, Rei da Noite.

Foi no Amantes, ainda, que o Testa de Ferro deu sua primeira cabe�ada � numa briga feia: veio tintureiro, pol�cia especial e tudo � e resolveu fazer sucesso no tele-catch, como lutador. Foi l� tamb�m que o Manuel Gar�om descobriu sua grande voca��o, depois de dezessete anos como cont�nuo do Minist�rio do Trabalho, de quepe e outros bichos. Foi l�, enfim, que tudo aconteceu.

Naquele s�bado eu tinha pedido ao portugu�s pra largar mais cedo � naquele tempo n�o tinha essa colher de ch� de semana inglesa, n�o, meu camarada! A�, desci ali pela Senador Pompeu, entrei na Marisqueira, mandei o Aristeu me fazer um bife com dois ovos, tudo mal passado, que assim � que d� sust�ncia, pedi uma barriguda e me forrei. Dali, peguei o bonde na Central e fui pro Jaime.

S�bado, tu j� viu, n�? � o Jaime fica assim, �. Mas foi legal que deu tempo de eu fazer a digest�o. A�, as tr�s e pouca tava eu sentado naquela cadeira milagrosa, o Baby (Jaime tinha ido no Hotel Novo Mundo fazer o do Cauby) dando aquele molho secreto, a pasta ao mesmo tempo esticando e tingindo, deixando o bom cabelo pretinho, brilhando e sem perigo de ficar vermelho depois, como o daquele viado l� do Coelho Neto que uma vez me deixou a cabe�a cheia de postema.

Sa� do Jaime e fui fazer as unhas � no Jaime n�o tinha manicure. E a Leonor, que j� estava me esperando, me recebeu com aquele jeit�o escrachado, falando aquele mont�o de sacanagens, seu filho disso, seu filho daquilo, cum�qui�? Vamos l�? E eu j� metendo a m�o na cumbuquinha com �gua quente, alicate pra l� cut�cula pra c�, lixa (a do mindinho deixa mais comprida, Le�!), esmalte branco, sopra de leve, que beleza, parece at� m�o de pianista (ou de viado, seu filho disso, seu filho daquilo outro...). Papo de manicure!

Jaime; Leonor; tinturaria:

� Cumequi�, seu Miguel, t� pronto?

� O de linho?

� Mas � claro!

� Esse t� engomando ainda.

� Porra, seu Miguel, hoje � s�bado!

� E � por isso mesmo! Sabes quantos a Arminda est� a engomar desd'ontem? Voc�s crioulos andam a simana toda d'macac�o. N�o s�i praqu�, s� porque � s�bado, butar linho branco!

� N�o fode, galego! Vai tomar dentro... Mas t� bom. Eu dou um tempo ali no sapateiro e daqui a pouco volto a�.

Leonor; tinturaria; sapateiro:

� Fala, Z� Bento!

� �, nego velho! Qu� qui manda?

� Vim pegar o pisante. 

� Qual �?

� Aquele ali, o de couro de cobra.

� Ah, t� aqui. Meia sola e salto.

Banho tomado, meto l� o Royal-Briar, visto terno e gravata, cal�o o Motinha, saio, chamo um carro e vou pegar a Dagmar, que vem dizendo uma letra tamb�m. Chegamos no "Amantes", subimos a escadaria , um oba pra um, um ol� pro outro, o baile j� come�ou.

Mesa 17, aquela j� no esquema, daquele canto d� pra ver o sal�o todo e apreciar as melodias.

� Pois n�o, meu chefe...

� Um tra�ado, uma portuguesa e um pirezinho de tremo�os.

� Casco escuro, hein!

Um grande baile aquele! Os cavalheiros de branco, as damas de azul, duas orquestras se revezando (Napole�o Tavares e seus Soldados Musicais e a famosa Marajoara de Raimundo Louren�o), o pessoal da ala dos nobres da Portela gastando os tubos (era princ�pio de m�s), muita crioula bonita, uma noite memor�vel aquela, promovida pelo Sindicato das Manicures e dos Barbeiros.

Meia noite e quinze. Si bemol menor. O naipe de metais introduz, a lady-crooner Wanda Brasil mete l�: "Meu mundo caiu..."

Dou um pi�o, fa�o um espaguete � eu hein, o que qui � isso?! � o ch�o vai fugindo devagarinho dos meus p�s, as janelas v�o subindo, o ventilador do teto vai ficando cada vez mais no alto, nego querendo subir pelas paredes, olha a gente l� embaixo, sem entender nada e o jornal na segunda-feira dando a manchete:

"GAFIEIRA CAI DENTRO DA SAPATARIA � Sobrado condenado pela prefeitura � Cedofeita processa donos do "Amantes" � Orquestra tocava "Meu Mundo Caiu" � Vizinhos D�o Gra�as a Deus".

 

Nei Lopes (1942) � escritor, compositor, pesquisador das culturas da Di�spora Africana, advogado, e mora em Vila Isabel, Rio de Janeiro. Al�m dos sambas deliciosos e de grande sucesso que fazem a alegria dos nossos ouvidos � n�o deixem de ouvir seu �ltimo disco,"Sincopando o Breque" � � defensor e ativo participante do movimento pela igualdade de direitos da ra�a negra.

Esta sua cr�nica �, realmente, a cara do Rio.

Texto extra�do do livro "171 - Lapa - Iraj� - Casos e Enredos de Sambas", Edi��es Folha Seca - Rio de Janeiro, 1999, p�g. 59.