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Eu sou o homem-fantasma. Tenho carne, tenho ossos, tenho identidade, mas pertencem ao outro. Sou
o detetive do outro, buscando no ar os rastos de meus crimes suaves, ca�ando
nas ruas os vest�gios de mim.
Outrora morei num reino � beira-mar. Rosas floriam no Flamengo, jovens eram os arranha-c�us
e os telefones, os recados me chegavam do Largo do Botic�rio, do
bar do Palace, do Jo�, dos terreiros de Mangueira. Todos me chamavam,
todos me queriam. Hoje n�o moro mais, estou s�, curvo, com
a minha sombra cobrindo uma �ltima parede a demolir.
Procuro e n�o encontro os meus ver�es passados. Havia um Rio transverberado e quente, quase
me lembro. E mulheres. Flora, Ta�s, Helo�sa, onde est�o
as grandes regatas da enseada, os bal�es de junho, as casuarinas,
os m�veis de mogno, o gorgor�o escarlate, a umbela do Vi�tico,
as chegan�as de Natal, as madrugadas diab�licas do High Life,
onde estou eu?
Perdi-me na esquina da rua Gon�alves Dias em 1928, desabei com o Morro do Castelo, afoguei-me
nos mangues de 35.
Meus parentes emigraram na brisa da boca-da-noite, meu av� quis proteger meu futuro nos ser�es
de S�o Crist�v�o, meus tios morreram tuberculosos,
minha av� virou folha seca do Outeiro da Gl�ria, minha m�e
virou pedra em Botafogo, minhas namoradas, ba�as, desbotadas, foram
removidas ex-of�cio para o planalto de Goi�s.
Oh, quase me lembro, e quanto,dos caranguejos e violinos duma noite imperme�vel, da coca�na
elegante, do Alcazar na Rua da Vala, das ressacas nos rochedos do Leblon,
das resinas arom�ticas na Igreja da Boa Morte, dos veludos fulvos
da Imperial, das tardes ol�mpicas de S�o Janu�rio,
do gol de Valido, dos meninos que gritavam A Noite, das v�speras
de amor, dos crep�sculos engasgados, dos refrigerantes das cal�adas,
dos meus chap�us de palha, dos meus bigodes eternos, do meu smoking
a refulgir como rosa que se anuncia no espelho do quarto.
N�o sei quando nasci.Talvez no tempo dos capoeiras do Monturo, quando o Delfim ficou doido,
quando morreu o Nilo.
Tenho 30? 40? 60? 90? Ou h� 395 anos existo? 395 anos de absurdas lumin�rias
e asp�rrima solid�o.
�s vezes, n�o eu, mas a cidade, sou a cidade; desfiz-me em todos os acontecimentos da
cidade: fui o suic�dio de Boca do Mato, o estupro da Floresta da
Tijuca, a amendoeira do Morro da Vi�va, os pardais da amendoeira
do Morro da Vi�va, o capim vadio de Vila Isabel, a Rua do Ouvidor
com o seu enfado feliz, o mendigo de S�o Francisco de Paula, o carnaval
da Galeria, a Rua da Miseric�rdia com as suas placas orvalhadas,
os Arcos, a nave da Candel�ria com o seu gigantesco defunto, os
liquens da palmeira real, o claustro de S�o Bento, o Livramento,
o Arpoador, o Morro da Babil�nia. Fui a revolta do marinheiro preto,
o quebra-quebra, a greve, o grito do estudante, o solu�o no Terreiro
da Pol�;, as favelas com seus partos de dor, a faca da fome, a mutila��o
dos miser�veis, o despertar chuvoso dos sub�rbios, o Beco
dos Barbeiros, a Sa�de, fui co�gulo de sangue, porta de necrot�rio,
m�o magra de menino negro, barraco derrubado na tormenta.
Estive em todos os pratos vazios, nos c�rceres do Estado Novo, estive no desespero de todas
as gamboas, e ao longo das �pocas brancas de cal assombrei os corredores
da Santa Casa com os meus uivos, como uiva a Lua Cheia atrav�s das
grades de todas as pris�es.
Meu pai, meu pobre pai emoldurado desde 1920 num retrato do Passeio P�blico... Onde estou, meu pai,
para onde vou?
-- N�o est�s, nem vais, meu filho: ficas. �s apenas o fantasma dum fantasma.
Desfiz-me nas areias que a ventania levantou em 1918, evolei-me no serm�o de l�grimas
do Carmo, dilu�-me nos serenos do Largo da Lapa, desapareci com
o ponto de cem r�is, dissolvi-me em vinhos franceses, incendiei-me
na cauda do cometa Halley, perdi minha rota nos nevoeiros de setembro,
corro�-me nas maresias da barra, esva�-me em tosse, esbati-me
em treva, desbaratei-me nas encruzilhadas da macumba, fui mastigado pelos
peixes, desintegrei-me numa cat�strofe a�rea, esfarelaram-me
as unhas dos agiotas, atassalharam-me as marretas imobili�rias,
sufocaram-me os malignos, beberam-me as sanguessugas, roeram-me os caninos
dos vereadores, expungiram-me as m�os de �vidas estrangeiras.
Meu pai, meu pai!
-- Viraste nuvem, meu filho, viraste chuva, escorreste pelos telhados, pelas calhas, pelas manilhas
debaixo da terra, desapareceste para sempre no mar oceano.
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