CANTO F�NEBRE DO CARIOCA

Paulo Mendes Campos

Eu sou o homem-fantasma. Tenho carne, tenho ossos, tenho identidade, mas pertencem ao outro. Sou o detetive do outro, buscando no ar os rastos de meus crimes suaves, ca�ando nas ruas os vest�gios de mim.

Outrora morei num reino � beira-mar. Rosas floriam no Flamengo, jovens eram os arranha-c�us e os telefones, os recados me chegavam do Largo do Botic�rio, do bar do Palace, do Jo�, dos terreiros de Mangueira. Todos me chamavam, todos me queriam. Hoje n�o moro mais, estou s�, curvo, com a minha sombra cobrindo uma �ltima parede a demolir.

Procuro e n�o encontro os meus ver�es passados. Havia um Rio transverberado e quente, quase me lembro. E mulheres. Flora, Ta�s, Helo�sa, onde est�o as grandes regatas da enseada, os bal�es de junho, as casuarinas, os m�veis de mogno, o gorgor�o escarlate, a umbela do Vi�tico, as chegan�as de Natal, as madrugadas diab�licas do High Life, onde estou eu?

Perdi-me na esquina da rua Gon�alves Dias em 1928, desabei com o Morro do Castelo, afoguei-me nos mangues de 35.

Meus parentes emigraram na brisa da boca-da-noite, meu av� quis proteger meu futuro nos ser�es de S�o Crist�v�o, meus tios morreram tuberculosos, minha av� virou folha seca do Outeiro da Gl�ria, minha m�e virou pedra em Botafogo, minhas namoradas, ba�as, desbotadas, foram removidas ex-of�cio para o planalto de Goi�s.

Oh, quase me lembro, e quanto,dos caranguejos e violinos duma noite imperme�vel, da coca�na elegante, do Alcazar na Rua da Vala, das ressacas nos rochedos do Leblon, das resinas arom�ticas na Igreja da Boa Morte, dos veludos fulvos da Imperial, das tardes ol�mpicas de S�o Janu�rio, do gol de Valido, dos meninos que gritavam A Noite, das v�speras de amor, dos crep�sculos engasgados, dos refrigerantes das cal�adas, dos meus chap�us de palha, dos meus bigodes eternos, do meu smoking a refulgir como rosa que se anuncia no espelho do quarto.

N�o sei quando nasci.Talvez no tempo dos capoeiras do Monturo, quando o Delfim ficou doido, quando morreu o Nilo.

Tenho 30? 40? 60? 90? Ou h� 395 anos existo? 395 anos de absurdas lumin�rias e asp�rrima solid�o.

�s vezes, n�o eu, mas a cidade, sou a cidade; desfiz-me em todos os acontecimentos da cidade: fui o suic�dio de Boca do Mato, o estupro da Floresta da Tijuca, a amendoeira do Morro da Vi�va, os pardais da amendoeira do Morro da Vi�va, o capim vadio de Vila Isabel, a Rua do Ouvidor com o seu enfado feliz, o mendigo de S�o Francisco de Paula, o carnaval da Galeria, a Rua da Miseric�rdia com as suas placas orvalhadas, os Arcos, a nave da Candel�ria com o seu gigantesco defunto, os liquens da palmeira real, o claustro de S�o Bento, o Livramento, o Arpoador, o Morro da Babil�nia. Fui a revolta do marinheiro preto, o quebra-quebra, a greve, o grito do estudante, o solu�o no Terreiro da Pol�;, as favelas com seus partos de dor, a faca da fome, a mutila��o dos miser�veis, o despertar chuvoso dos sub�rbios, o Beco dos Barbeiros, a Sa�de, fui co�gulo de sangue, porta de necrot�rio, m�o magra de menino negro, barraco derrubado na tormenta.

Estive em todos os pratos vazios, nos c�rceres do Estado Novo, estive no desespero de todas as gamboas, e ao longo das �pocas brancas de cal assombrei os corredores da Santa Casa com os meus uivos, como uiva a Lua Cheia atrav�s das grades de todas as pris�es.

Meu pai, meu pobre pai emoldurado desde 1920 num retrato do Passeio P�blico... Onde estou, meu pai, para onde vou?

-- N�o est�s, nem vais, meu filho: ficas. �s apenas o fantasma dum fantasma.

Desfiz-me nas areias que a ventania levantou em 1918, evolei-me no serm�o de l�grimas do Carmo, dilu�-me nos serenos do Largo da Lapa, desapareci com o ponto de cem r�is, dissolvi-me em vinhos franceses, incendiei-me na cauda do cometa Halley, perdi minha rota nos nevoeiros de setembro, corro�-me nas maresias da barra, esva�-me em tosse, esbati-me em treva, desbaratei-me nas encruzilhadas da macumba, fui mastigado pelos peixes, desintegrei-me numa cat�strofe a�rea, esfarelaram-me as unhas dos agiotas, atassalharam-me as marretas imobili�rias, sufocaram-me os malignos, beberam-me as sanguessugas, roeram-me os caninos dos vereadores, expungiram-me as m�os de �vidas estrangeiras.

Meu pai, meu pai!

-- Viraste nuvem, meu filho, viraste chuva, escorreste pelos telhados, pelas calhas, pelas manilhas debaixo da terra, desapareceste para sempre no mar oceano.


Paulo Mendes Campos � outro mineiro que adotou o Rio de Janeiro como sua cidade. Pertenceu ao grupo composto por Fernando Sabino, Rubem Braga, Otto Lara Resende, H�lio Pellegrino e outros que, na d�cada de 60, com seus textos t�o l�ricos tra�avam os retratos do cotidiano da Cidade Maravilhosa.


Texto extra�do do livro "Homenzinho na Ventania", Editora do Autor � Rio de Janeiro, 1962, p�g.60.


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06-jun-2008