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Que frase de Proust me ocorreu, enquanto distraidamente fazia a barba? Nenhuma,
muito menos um verso de Mallarm� (preciso decorar um urgentemente,
sou amigo do poeta Geraldo Carneiro e passo muita vergonha com a erudi��o
dele). Mas aproveito que ainda n�o amanheceu e taco um verso - ou
dois, n�o me lembro bem - de Byron, que decorei na remota juventude,
para impressionar as mo�as (n�o impressionei, mas, quem sabe,
agora talvez impressione as velhas). "Twixt night and morn, upon the horizon's
verge, Life hovers like a star." "Entre a noite e a manh�, sobre
a orla(1) do horizonte, a Vida paira como uma estrela." N�o sei
bem a que isso se aplica no momento, mesmo porque, apesar de estar tudo
escuro aqui no terra�o, n�o h� nenhuma estrela �
vista. Mas n�o fica bem para um homem de letras come�ar um
trecho de di�rio sem lembrar uma frase ou verso ilustre, a reputa��o
requer um constante burnir. Necess�rio achar imediatamente meus
dicion�rios de cita��es, para me lembrar repentinamente
de p�rolas liter�rias e poder manter este di�rio.
Quem pensa que a vida do homem de letras � mole est� muito
enganado.
Esperar clarear, para andar no cal�ad�o. Quando me recomendou arejar
o ju�zo andando no cal�ad�o, meu combativo analista
me disse: "Voc� vai fazer uma coisa que vai mudar a sua vida." Como
todo mundo, principalmente escritor, quer mudar de vida, topei. De fato
mudei, agora fico bestando, esperando clarear para andar no cal�ad�o.
E ando no cal�ad�o, � �bvio, onde sou regularmente
humilhado pelo capenguinha. Pensar em alguma observa��o inteligente
para fazer a respeito disso.
Andando no cal�ad�o. Continuo n�o gostando, mas creio que
j� posso considerar-me um veterano. Ou pelo menos n�o sou
mais um iniciante, j� tenho conhecidos e j� fico de olho
para a hora em que duas mo�as, espl�ndidas como potrancas,
passam em corridinha leve, com os coroas a cochichar "ai, meu tempo". E
a mo�a de bicicleta e short meio saiote ao vento, ai meu tempo.
O capenguinha, desta vez, passou na dire��o oposta, n�o
houve humilha��o, mas o tempo provaria que eu devia ter prestado
mais aten��o a seu olhar malquerente. O pessoal do programa
sa�de continua nos quiosques, rebatendo a noite com uma cervejinha
e uns cigarrinhos. Cogito em, desta vez, encurtar a jornada, mas manda
o brio que prossiga at� a lata de lixo do Arpoador (haver�
nisso algo de metaf�rico?) que marca a metade de meu percurso e,
al�m de tudo, ia tomar um esbregue do analista. Recebo uma beijoca
de uma senhora encanecida, que se confessa minha f�. Emocionado,
fecho os olhos e penso que foi a mo�a do saiote. Agrade�o
penhoradamente e sigo em frente glorioso. O senhor que corre com a cara
de quem acaba de perder cem mil reais no bingo me cumprimenta, o cidad�o
que caminha como quem est� fazendo cocoricoc� tamb�m.
E o capenguinha, com toda a certeza s� para me chatear, passa por
mim. Deu a volta apenas pelo gostinho de me ultrapassar, o miser�vel.
Mas retorno sem maiores incidentes. Ao atravessar a avenida para tornar
� casa, topo com Z� Rubem Fonseca, barbado e embu�ado,
que finge que n�o me v�. Deve ter ingressado na carreira de
cr�tico liter�rio. Ou ent�o deve ter acatado um conselho
do analista dele. Deixo-o em paz. Mais tarde telefono e digo a ele que
meu computador � maior que o dele. Isso mata o bicho.
Ler jornais. Seq�estro, estupro, bala perdida, o v�rus Ebola vem
a� qualquer hora dessas, tudo faz mal, morreu mais um sujeito de
minha idade. Destaque para o futebol japon�s, que, ali�s,
tamb�m aparece destacado na TV. Claro que eles ser�o campe�es
do mundo assim que entrarem numa Copa. Elementar: v�o poder substituir
o time inteiro o tempo todo sem ningu�m notar, vai ser uma canseira
geral no Ocidente. Ao diabo com os jornais, chega de assombra��o,
vamos trabalhar, que a vida � breve.
Primeiro o expediente. Dois fax ( faxes ? Pensando bem, esque�am que perguntei,
chega de goza��o com a minha condi��o de acad�mico).
Dois esse neg�cio que chega pelo fio do telefone, ambos do Minist�rio
da Cultura e ambos endere�ados a Jo�o Ubaldo Ribeiro Filho.
Respondo ou n�o respondo, j� que n�o sou Jo�o
Ubaldo Ribeiro Filho (e, ali�s, prefiro Jo�o Ubaldo de Oliveira,
j� estou mais acostumado)? Opto por n�o responder, n�o
quero assumir falsa identidade. Al�m disso, essa coisa de Jo�o
Ubaldo Ribeiro Filho pode n�o cair bem com minha mulher. Fax �
cesta. Que mais? Diversos convites para trabalhar de gra�a, como
sempre. Convites � cesta. Originais que querem que eu leia. N�o
leio, mas n�o tenho coragem de atir�-los � cesta e
ponho-os na pilha piramidal que j� me entope o gabinete e j�
me rendeu amea�as de div�rcio. Cartas a responder. Respondo
depois.
Trabalhando em mais uma obra-prima. Quanto mais escrevo, mais dif�cil fica.
Talvez deva dar outra andada no cal�ad�o, antes de pegar
nisso. N�o, n�o, nada de correr da presa, ao trabalho. Al�m
disso, como tomar um u�sque escondido no Diagonal, no fim da manh�,
sem muita culpa? N�o, senhor, escrever. Que coisa mais besta, esta,
o sujeito sentado aqui, escrevendo uma por��o de hist�rias
que nunca aconteceram, sobre gente que nunca existiu. Um amigo meu, quando
me queixei, me disse que n�o fui eu quem inventou isso, que, desde
que o homem aprendeu a escrever, escreve hist�rias. Ou at�
antes de escrever, como no caso de Homero. Portanto, n�o tem nada
de ficar questionando, tem � de sentar aqui em frente ao monitor
e mandar ver. Mando ver, saem umas mixariazinhas desconsoladas. Amanh�
eu conserto, ou ent�o depois de amanh�. Mas ningu�m
pode dizer que n�o trabalhei, Deus � testemunha. U�sque
no Diagonal.
U�sque no Diagonal,na companhia de Rosa Magn�lia, Z� Fuzileiro, Carlinhos Judeu,
Paulinho Cachoeira, Toninho Plut�nio, Ti�o Cheiroso, Rubem
Magistrado, Geraldinho CD e outros renomados membros de minha patota. A
vida � bela. Papo de alto n�vel, hoje versando sobre comida
baiana. Saio intelectualmente renovado.
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