DO DI�RIO DE UM HOMEM DE LETRAS

Jo�o Ubaldo Ribeiro

Que frase de Proust me ocorreu, enquanto distraidamente fazia a barba? Nenhuma, muito menos um verso de Mallarm� (preciso decorar um urgentemente, sou amigo do poeta Geraldo Carneiro e passo muita vergonha com a erudi��o dele). Mas aproveito que ainda n�o amanheceu e taco um verso - ou dois, n�o me lembro bem - de Byron, que decorei na remota juventude, para impressionar as mo�as (n�o impressionei, mas, quem sabe, agora talvez impressione as velhas). "Twixt night and morn, upon the horizon's verge, Life hovers like a star." "Entre a noite e a manh�, sobre a orla(1) do horizonte, a Vida paira como uma estrela." N�o sei bem a que isso se aplica no momento, mesmo porque, apesar de estar tudo escuro aqui no terra�o, n�o h� nenhuma estrela � vista. Mas n�o fica bem para um homem de letras come�ar um trecho de di�rio sem lembrar uma frase ou verso ilustre, a reputa��o requer um constante burnir. Necess�rio achar imediatamente meus dicion�rios de cita��es, para me lembrar repentinamente de p�rolas liter�rias e poder manter este di�rio. Quem pensa que a vida do homem de letras � mole est� muito enganado.

Esperar clarear, para andar no cal�ad�o. Quando me recomendou arejar o ju�zo andando no cal�ad�o, meu combativo analista me disse: "Voc� vai fazer uma coisa que vai mudar a sua vida." Como todo mundo, principalmente escritor, quer mudar de vida, topei. De fato mudei, agora fico bestando, esperando clarear para andar no cal�ad�o. E ando no cal�ad�o, � �bvio, onde sou regularmente humilhado pelo capenguinha. Pensar em alguma observa��o inteligente para fazer a respeito disso.

Andando no cal�ad�o. Continuo n�o gostando, mas creio que j� posso considerar-me um veterano. Ou pelo menos n�o sou mais um iniciante, j� tenho conhecidos e j� fico de olho para a hora em que duas mo�as, espl�ndidas como potrancas, passam em corridinha leve, com os coroas a cochichar "ai, meu tempo". E a mo�a de bicicleta e short meio saiote ao vento, ai meu tempo. O capenguinha, desta vez, passou na dire��o oposta, n�o houve humilha��o, mas o tempo provaria que eu devia ter prestado mais aten��o a seu olhar malquerente. O pessoal do programa sa�de continua nos quiosques, rebatendo a noite com uma cervejinha e uns cigarrinhos. Cogito em, desta vez, encurtar a jornada, mas manda o brio que prossiga at� a lata de lixo do Arpoador (haver� nisso algo de metaf�rico?) que marca a metade de meu percurso e, al�m de tudo, ia tomar um esbregue do analista. Recebo uma beijoca de uma senhora encanecida, que se confessa minha f�. Emocionado, fecho os olhos e penso que foi a mo�a do saiote. Agrade�o penhoradamente e sigo em frente glorioso. O senhor que corre com a cara de quem acaba de perder cem mil reais no bingo me cumprimenta, o cidad�o que caminha como quem est� fazendo cocoricoc� tamb�m. E o capenguinha, com toda a certeza s� para me chatear, passa por mim. Deu a volta apenas pelo gostinho de me ultrapassar, o miser�vel. Mas retorno sem maiores incidentes. Ao atravessar a avenida para tornar � casa, topo com Z� Rubem Fonseca, barbado e embu�ado, que finge que n�o me v�. Deve ter ingressado na carreira de cr�tico liter�rio. Ou ent�o deve ter acatado um conselho do analista dele. Deixo-o em paz. Mais tarde telefono e digo a ele que meu computador � maior que o dele. Isso mata o bicho.

Ler jornais. Seq�estro, estupro, bala perdida, o v�rus Ebola vem a� qualquer hora dessas, tudo faz mal, morreu mais um sujeito de minha idade. Destaque para o futebol japon�s, que, ali�s, tamb�m aparece destacado na TV. Claro que eles ser�o campe�es do mundo assim que entrarem numa Copa. Elementar: v�o poder substituir o time inteiro o tempo todo sem ningu�m notar, vai ser uma canseira geral no Ocidente. Ao diabo com os jornais, chega de assombra��o, vamos trabalhar, que a vida � breve.

Primeiro o expediente. Dois fax ( faxes ? Pensando bem, esque�am que perguntei, chega de goza��o com a minha condi��o de acad�mico). Dois esse neg�cio que chega pelo fio do telefone, ambos do Minist�rio da Cultura e ambos endere�ados a Jo�o Ubaldo Ribeiro Filho. Respondo ou n�o respondo, j� que n�o sou Jo�o Ubaldo Ribeiro Filho (e, ali�s, prefiro Jo�o Ubaldo de Oliveira, j� estou mais acostumado)? Opto por n�o responder, n�o quero assumir falsa identidade. Al�m disso, essa coisa de Jo�o Ubaldo Ribeiro Filho pode n�o cair bem com minha mulher. Fax � cesta. Que mais? Diversos convites para trabalhar de gra�a, como sempre. Convites � cesta. Originais que querem que eu leia. N�o leio, mas n�o tenho coragem de atir�-los � cesta e ponho-os na pilha piramidal que j� me entope o gabinete e j� me rendeu amea�as de div�rcio. Cartas a responder. Respondo depois.

Trabalhando em mais uma obra-prima. Quanto mais escrevo, mais dif�cil fica. Talvez deva dar outra andada no cal�ad�o, antes de pegar nisso. N�o, n�o, nada de correr da presa, ao trabalho. Al�m disso, como tomar um u�sque escondido no Diagonal, no fim da manh�, sem muita culpa? N�o, senhor, escrever. Que coisa mais besta, esta, o sujeito sentado aqui, escrevendo uma por��o de hist�rias que nunca aconteceram, sobre gente que nunca existiu. Um amigo meu, quando me queixei, me disse que n�o fui eu quem inventou isso, que, desde que o homem aprendeu a escrever, escreve hist�rias. Ou at� antes de escrever, como no caso de Homero. Portanto, n�o tem nada de ficar questionando, tem � de sentar aqui em frente ao monitor e mandar ver. Mando ver, saem umas mixariazinhas desconsoladas. Amanh� eu conserto, ou ent�o depois de amanh�. Mas ningu�m pode dizer que n�o trabalhei, Deus � testemunha. U�sque no Diagonal.

U�sque no Diagonal,na companhia de Rosa Magn�lia, Z� Fuzileiro, Carlinhos Judeu, Paulinho Cachoeira, Toninho Plut�nio, Ti�o Cheiroso, Rubem Magistrado, Geraldinho CD e outros renomados membros de minha patota. A vida � bela. Papo de alto n�vel, hoje versando sobre comida baiana. Saio intelectualmente renovado.

Da esquerda para a direita vemos: Geraldinho CD, Paulo Cachoeira (Paulo Afonso), Rosa Magn�lia, Toninho Plut�nio, Z� Fuzileiro, Jo�o Ubaldo e Carlinhos Judeu.

A tarde passa fugaz, abate-se o atro v�u da noite sobre meu terra�o. (Podia dizer que essa frase � de algu�m, mas tem leitor chato que vai pesquisar e depois me escreve espinafra��es.) Vou procurar os dicion�rios de cita��es. N�o, n�o vou, amanh� eu procuro. Em lugar disso, um passatempo intelectual, digno de um homem de letras. E assim, diante do computador, clico o mouse no �cone Games e inicio uma desafiante paci�ncia de baralho. Aquela mais dif�cil, que requer racioc�nio, � claro.

(1) Espero a gratid�o dos leitores, por n�o haver utilizado a palavra "f�mbria".

De uma cr�nica dominical de O GLOBO em 1995. Fotos tiradas na parte externa (balc�o que hoje n�o existe mais) do Restaurante Diagonal, no Leblon, neste mesmo ano. Da esquerda para a direita vemos: Geraldinho CD, Paulo Cachoeira (Paulo Afonso), Rosa Magn�lia, Toninho Plut�nio, Z� Fuzileiro, Jo�o Ubaldo e Carlinhos Judeu.


Quando o Diagonal fechou o balc�o lateral a turma do Chope, nos fins de semana, procurou novos rumos, novos bares. Jo�o Ubaldo e amigos (velhos e novos) passaram a se encontrar no Flor do Leblon, na Rua Dias Ferreira esquina com Ven�ncio Flores. A mesa � sempre a mesma (a que aparece no centro da fotografia).

Em novembro de 2003, o "Flor do Leblon" foi vendido. O Belmonte, sofisticado e caro, ocupa o antigo espa�o. A turma se dividiu por outros bares. Jo�o freq�enta o "Tio Sam".