A crise energ�tica brasileira

C�sar Benjamin

Em eletricidade, o Brasil ocupa no mundo uma posi��o semelhante � da Ar�bia Saudita em petr�leo. Gra�as a isso, mais de 90% de nossa capacidade de gera��o se baseia em duas coisas gratuitas, a �gua das chuvas e a for�a da gravidade. Bacias hidrogr�ficas generosas, com centenas de rios permanentes e caudalosos, se espalham por grandes regi�es - Sul, Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste e Norte - cujos regimes de chuvas s�o bem diferentes. Por serem rios de planalto, seguem trajet�rias em que, de modo geral, a declividade � suave. Quando barrados, formam grandes lagos. S�o energia potencial estocada. � s� fazer a �gua cair, passando por uma turbina, que geramos a eletricidade mais barata do mundo, de fonte renov�vel e n�o poluente. Se as barragens forem constru�das em seq��ncia, ao longo do curso de um rio, a mesma gota d'�gua � usada in�meras vezes, antes de se perder no oceano.

Como a quantidade de chuvas varia em cada ano, os reservat�rios funcionam como uma esp�cie de poupan�a. A decis�o de form�-la data de cinq�enta anos atr�s. Foi impulsionada pela maior seca de nossa hist�ria, que durou de 1951 a 1956. Nunca, at� hoje, se viu coisa igual. Cinco anos sucessivos com pouqu�ssima chuva em quase todo o pa�s provocaram grandes transtornos e um pesado racionamento de energia. T�nhamos ent�o 3.500 Megawatts-hora (MWh) de pot�ncia instalada, sob controle do capital privado, principalmente estrangeiro, que investia pouco e travava uma permanente queda de bra�os com o Estado para obter aumentos de tarifas.

O Brasil da d�cada de 1950 queria crescer. Precisava de energia. Em 1957, o Estado construiu a barragem de Furnas, para garantir o necess�rio aumento de oferta. Como a mem�ria da grande seca era fresca, o moderno sistema el�trico brasileiro, que nasceu ali, foi dimensionado para suportar outra ocorr�ncia como aquela, acumulando combust�vel - ou seja, �gua - suficiente para cinco anos de opera��o, mesmo sem chuvas. A expans�o do sistema passou a ser planejada de modo que a demanda prevista para os cinco anos seguintes permanecesse sempre igual � "energia firme", ou seja, a energia que pode ser gerada em regime de seca. A taxa de risco toler�vel foi fixada bem baixa, em 5%.

Com o esfor�o e o talento de v�rias gera��es, tudo se aperfei�oou. Como as chuvas tamb�m variam de regi�o para regi�o, o sistema foi interligado por linhas de transmiss�o, de modo a permitir que um operador central racionalize o uso da �gua dispon�vel em todo o pa�s. Gra�as a isso, os reservat�rios situados em diferentes bacias hidrogr�ficas, que n�o t�m nenhuma liga��o f�sica entre si, funcionam como se fossem vasos comunicantes. Se chove pouco na bacia do rio S�o Francisco e muito na bacia do rio Paran�, a usina de Paulo Affonso � orientada a colocar pouca energia na rede, economizando sua �gua que se tornou preciosa, e a usina de Itaipu faz a compensa��o. Ao colocar mais pot�ncia na rede, Itaipu cede �gua, indiretamente, para Paulo Affonso. Nos lares, escrit�rios e f�bricas, ningu�m percebe o inteligente rearranjo que permite otimizar o fornecimento da energia em cada momento.

Quanto � garantia de desempenho no tempo, um sofisticado modelo estat�stico, aqui concebido e alimentado com os dados da hidrologia brasileira, permite gerar uma s�rie que simula o comportamento do nosso sistema h�drico em um per�odo - evidentemente, virtual - de dois mil anos. Espetacular ferramenta de planejamento: toda vez que as simula��es mostravam um risco de ocorr�ncia de d�ficit futuro maior do que 5%, estava na hora de construir uma nova hidrel�trica. E se, por falta de chuvas, o d�ficit nos fazia aproximar de 5% de risco no presente, estava na hora de ligar usinas t�rmicas, que formam o "banco de reservas" do sistema. Dessa combina��o de caracter�sticas, resultava uma alt�ssima confiabilidade. O Brasil, finalmente, tinha energia barata e segura.

Mesmo sendo estatal, o setor nunca foi monol�tico. Organizou-se em torno de uma holding - a Eletrobras, criada em 1962 -, cercada por empresas federais (principalmente, grandes geradoras), estaduais (principalmente distribuidoras, mas tamb�m geradoras) e at� mesmo algumas empresas privadas de menor porte, que continuaram existindo. Esse time transformou o Brasil em campe�o mundial de hidreletricidade. Entre 1957 e 1995, a capacidade instalada saltou de 3.500 mWh para 55.000 mWh. A palavra racionamento foi morar nos dicion�rios e na mem�ria dos cidad�os mais velhos.

Os especialistas estrangeiros em hidreletricidade vinham at� n�s, para aprender, e nos invejavam. Que pa�s n�o gostaria de ter um sistema energ�tico limpo, renov�vel, barato, capaz de estocar combust�vel para cinco anos, apto a transferir grandes blocos de energia do Sul para o Norte, do Nordeste para o Sudeste, gerenciando de forma integrada bacias hidrogr�ficas fisicamente distantes milhares de quil�metros? Que planejador n�o sonharia pilotar um sistema que lhe d� v�rios anos de folga para tomar decis�es, pois absorve sem nenhum problema qualquer descompasso presente entre oferta e demanda?

Quem n�o gostaria de gerenciar empresas com tantas usinas j� amortizadas, altamente rent�veis mesmo vendendo barato a energia que produzem?

Era assim o sistema el�trico brasileiro, at� seis anos atr�s. Poderia continuar mais ou menos assim, submetendo-se, � claro, aos aperfei�oamentos cab�veis. Sorte nossa. Os outros pa�ses que tamb�m usam muita energia hidrel�trica, como os Estados Unidos e o Canad�, j� esgotaram seu potencial. N�s, n�o. Estamos longe disso. Mesmo rejeitando projetos megaloman�acos e aceitando restri��es ambientais rigorosas, ainda podemos pelo menos dobrar o potencial hidrel�trico instalado, expandindo um sistema cujo custo marginal (o custo de constru��o de novas unidades) � muito inferior ao da op��o termel�trica, que usa principalmente diesel ou g�s, inevit�vel na maior parte do mundo.

At� o fim da d�cada de 1970, o sistema gerava sem problemas os recursos para sua pr�pria expans�o. Isso come�ou a mudar nos anos 80, com as crises g�meas da d�vida externa e da infla��o. Sucessivos governos passaram a usar a capacidade de endividamento de nossas robustas empresas el�tricas para obter os d�lares necess�rios ao pagamento dos juros exigidos pelos credores externos. Ao mesmo tempo, reprimiam sistematicamente reajustes de tarifas, para conter a infla��o. Com as empresas endividadas (sem que os recursos por elas captados tivessem sido usados no pr�prio setor) e tornadas deficit�rias, logo se estabeleceu uma ciranda de calotes. As distribuidoras - que s�o a "bilheteria" do sistema, pois recebem o dinheiro do consumidor - tiravam sua parte e transferiam o que sobrava; as estaduais faziam o mesmo, quando era poss�vel; as grandes geradoras federais, situadas no fim da linha, morriam na praia. Em meados da d�cada de 1990, as d�vidas cruzadas atingiam US$ 50 bilh�es. Era o argumento de que precisavam aqueles que passaram a defender o desmonte do sistema. Chegava o tempo das privatiza��es.

O primeiro passo preparat�rio para as privatiza��es - dado por Fernando Henrique Cardoso, ainda como ministro da Fazenda - foi a consolida��o e posterior anula��o dessas d�vidas cruzadas intra-setoriais, recolocando as empresas em posi��o rent�vel. O segundo passo foi a modelagem de um novo sistema n�o estatal, que seria baseado na atra��o de investidores privados, especialmente estrangeiros. A energia passaria a ser uma mercadoria como as demais, sujeita a oscila��es de oferta e demanda, e o sistema estatal cooperativo daria lugar a um sistema privado concorrencial. Coisa moderna.

Era uma transi��o sem precedentes, aqui e no mundo. Desconhecida. Dific�lima. Como veremos, talvez imposs�vel. Mas o Banco Mundial exigia. J� na Presid�ncia, Fernando Henrique come�ou ent�o a opera��o-desmonte, cuja l�gica louca e implac�vel, como veremos, lan�ar� o Brasil na maior crise de sua hist�ria. O governo entregou a charada a uma empresa inglesa, a Coopers & Lybrand, com a orienta��o de privatizar tudo, rapidamente. Foi mais realista que o rei. Alguns anos antes, em plena era Reagan, os Estados Unidos, p�tria do liberalismo, haviam tomado o cuidado de preservar sob controle estatal o seu sistema de gera��o hidrel�trica, parte do qual continua a ser operado diretamente pelo Ex�rcito. Isso se explica, de um lado, pela necessidade de preservar nas m�os do Estado o n�cleo estrat�gico do sistema energ�tico, sem o qual o pa�s p�ra. De outro, porque gerenciar hidrel�tricas � gerenciar as reservas de �gua, com implica��es diretas sobre abastecimento, irriga��o agr�cola, navega��o interior, meio ambiente, pesca, turismo e in�meras outras atividades. (A Fran�a foi muito mais radical: seu sistema el�trico permanece estatal e monol�tico.)

Nada disso comoveu os nossos tecnocratas. Eles entendem de derivativos, mercados futuros, hedges, rolagens, empr�stimos-ponte, fluxos financeiros em geral, mas n�o sabem nada de economia real, cuja base � justamente a energia. S�o funcion�rios do capitalismo financeiro. Acordam pensando em como atrair investimentos estrangeiros para equilibrar temporariamente as contas externas que eles mesmos arrombaram. Dormem pensando em como obter, da sociedade, mais recursos para manter em dia os pagamentos de juros a bancos e institui��es internacionais, que lhes dar�o bons empregos depois.

Vivem gerenciando um eterno curto prazo. Em suas m�os, o melhor sistema hidrel�trico do mundo, o motor da economia brasileira, virou um ativo financeiro a mais, dispon�vel para fazer caixa. Um belo patrim�nio a ser consumido.

O relat�rio produzido pela Coopers & Lybrand � uma das maiores obras-primas da ignor�ncia universal. Como o sistema ingl�s � puramente t�rmico, eles simplesmente ignoraram a forma espec�fica de otimiza��o da hidreletricidade brasileira, tratando as linhas de transmiss�o como uma parte "neutra" do sistema, uma parte que permaneceria estatal, com a gera��o e a distribui��o sendo entregues a agentes privados. Se implantado, esse modelo causaria uma perda imediata de 25% na pot�ncia instalada. A gritaria foi enorme, e algumas loucuras foram corrigidas. A reforma acabou criando uma empresa privada, chamada Operador Nacional do Sistema (ONS), encarregada de controlar toda a gera��o, seja ela feita em usinas privadas ou ainda estatais. � ele quem determina quanta energia cada usina colocar� na rede em cada momento (conforme a base de dados f�sicos do sistema) e a que pre�o (calculado a partir do custo marginal da opera��o do sistema naquela configura��o). O ONS ignora contratos ou qualquer tipo de acerto entre empresas. Tem poder absoluto. Em contrapartida, seu modo de operar � transparente para todos os agentes envolvidos: as decis�es s�o tomadas por computadores, segundo programas de otimiza��o conhecidos. Os demais integrantes do sistema t�m c�pias atualizadas dos dados e dos programas, de modo que as decis�es do ONS podem ser acompanhadas e checadas.

Ao contr�rio do que se pensa, a opera��o f�sica do sistema permaneceu, pois, absolutamente centralizada, mesmo depois das privatiza��es. � uma especificidade brasileira, que decorre da heran�a de nossa base hidrel�trica interligada. A empresa privada que compra uma geradora � apenas uma investidora em energia, e n�o uma operadora de usina. Ela n�o controla sua pr�pria opera��o, n�o define quanto vai produzir, nem fixa seus pre�os. Seu ganho � de natureza exclusivamente financeira. Como se v�, o novo modelo n�o conta com um mercado de energia propriamente dito - a menos para a parcela sobrante -, o que demonstra que a venda das usinas obedeceu apenas a um imperativo ideol�gico e a um interesse imediato de obter recursos.

Outros absurdos, no entanto, persistiram, al�m do absurdo em si, que � esquartejar e privatizar o setor. A venda come�ou pela "bilheteria" (as distribuidoras), antes mesmo que fosse criada a ag�ncia reguladora (Aneel), que seria uma pe�a-chave no funcionamento de qualquer novo modelo. Os contratos foram leoninos: a Light, por exemplo, que ao ser privatizada tornou-se uma subsidi�ria da EDF francesa, compra energia de Furnas (ainda estatal) a US$ 23,00 o kWh e a entrega ao consumidor residencial a US$ 120,00 (o consumidor franc�s, cuja renda � muito maior que a nossa, paga US$ 75,00 � mesma EDF para receber 1 kWh gerado em usinas at�micas, muito mais caras). Durante oito anos, por contrato, a empresa privatizada n�o precisa repassar ao consumidor nenhum ganho de produtividade, nem precisa fazer investimentos na expans�o do sistema que adquiriu. Um convite � remessa de lucros. O capital estrangeiro n�o se fez de rogado. Segundo a Gazeta Mercantil de 13 de mar�o de 2001, a Light privatizada distribuiu como dividendos 98% de seu lucro, generosamente entregues aos novos acionistas estrangeiros. O grupo americano AES retirou US$ 300 milh�es da Cemig em dois anos, sem iniciar nenhuma obra nova. Quando o governador Itamar Franco interveio, retomando o controle da empresa, foi crucificado pela equipe econ�mica, insultado em Nova York por Arm�nio Fraga e tratado como d�bil mental pela imprensa.

Na outra ponta do sistema, em vez de atrair capitais privados para empreendimentos novos, garantindo assim o aumento da capacidade geradora, o governo colocou � venda as usinas hidrel�tricas que j� existiam, muitas das quais, como vimos, amortizadas, capazes de gerar quase de gra�a: US$ 5,00 o kWh. Os investidores queriam o que estava pronto, de modo a recuperar rapidamente o capital investido. Ganharam a parada. O sistema el�trico brasileiro come�ou a ser financeiramente canibalizado, como fora em passado long�nquo, e suas fatias foram sendo distribu�das pelo mundo inteiro. A antiga Eletrosul (hoje Gerasul) virou belga; a Cerj (RJ), chilena; a CEE-NNE (Norte e Nordeste), a CEE-CO (Centro-Oeste), a Eletropaulo, a Elektro e a Cesp-Paranapanema (SP), americanas; a Coelce (CE), a Coelba (BA) e a Celpe (PE), espanholas; e assim por diante. Tudo com dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), retirado do nosso sal�rio. S� em 1998, o BNDES, gerente do FAT, repassou R$ 5 bilh�es para financiar os grupos privados que compraram estatais do setor el�trico. Detalhe macabro: a Resolu��o 2.668 do Banco Central, assinada em 1999, pro�be que o mesmo BNDES conceda financiamentos a empresas estatais, proibidas de investir. Na contabilidade do FMI, esse tipo de investimento � gasto, gera d�ficit p�blico.

Como boa parte da gera��o continuava - e continua - estatal, o Brasil parou de investir na expans�o do sistema energ�tico, tendo em vista obter um super�vit cont�bil. Os investidores estrangeiros, por sua vez, preferiram seguir comprando as usinas prontas, que o governo generosamente lhes ofertava. Com o crescimento natural da demanda e a necessidade de colocar, a cada ano, mais pot�ncia na rede, restou ao sistema consumir suas reservas de �gua.

No novo modelo, as decis�es de investimento foram entregues a agentes privados, preferencialmente estrangeiros, que trariam d�lares e tecnologias. Tais agentes, como se sabe, t�m um card�pio de op��es em escala mundial. No portfolio de neg�cios ao seu alcance em cada momento, pode ocorrer perfeitamente que o item "gera��o el�trica no Brasil" ocupe uma posi��o tremendamente modesta, de acordo com suas avalia��es de rentabilidade e risco. N�o � um esc�ndalo, nem evid�ncia de m�-f�, que eles decidam n�o investir aqui. Esc�ndalo e evid�ncia de m�-f� � o governo entregar o destino do nosso setor energ�tico a quem nem sabe direito onde fica o "Brazil".

Uma vez tomada, tal decis�o cont�m um desdobramento l�gico: a energia, no Brasil, teria de ser transformada em um neg�cio muito atrativo. Ora, usinas hidrel�tricas exigem a imobiliza��o de recursos vultosos, e nelas o retorno do capital � muito mais lento. O investidor privado prefere naturalmente a termeletricidade, de retorno mais r�pido, embora de maior custo (entre US$ 40,00 e US$ 60,00 o MWh), pois nela o combust�vel � comprado. Nenhum problema, desde que o custo possa ser repassado ao consumidor.(Estranho mercado, que tende a levar o sistema a uma configura��o em que a mercadoria mais cara substitui a mais barata, mas deixemos isso de lado.) Eis o que importa destacar agora: a op��o ideol�gica pela privatiza��o embutia uma op��o t�cnica, tecnicamente indefens�vel: a mudan�a da matriz energ�tica brasileira. Este, como veremos, � um ponto-chave da crise. Ao lan�ar-se em tamanha aventura, t�o arriscada e t�o desnecess�ria, o governo brasileiro insistiu em tr�s mitos. O primeiro: real e d�lar manteriam a paridade durante muito tempo, sem sobressaltos, pois a estabilidade cambial seria garantida pelo Banco Central. O segundo: o petr�leo (e, com ele, o g�s boliviano, combust�vel das usinas t�rmicas a serem constru�das) permaneceria barato, pois o governo americano garantia que o Oriente M�dio estava sob controle. O terceiro: grandes investidores estrangeiros estavam ind�ceis para despejar seus d�lares aqui. O erro de c�lculo - se c�lculo houve - n�o poderia ter sido maior. Em janeiro de 1999 o real desabou, e o governo foi obrigado a alterar o regime de c�mbio, que passou a flutuar. Enquanto isso, o pre�o do petr�leo triplicou, atingindo o patamar de US$ 30,00; como o pre�o do g�s boliviano � indexado ao petr�leo, o custo de gera��o nas usinas t�rmicas previstas saltou para mais de US$ 40,00 o mWh, com o d�lar valendo agora o dobro, em real (ver "Geopol�tica do g�s"). Os investidores, por sua vez, multiplicaram exig�ncias: 70% dos novos projetos deveriam ser financiados pelo BNDES, o pre�o do g�s deveria ser estabelecido em contratos de longo prazo, o governo brasileiro precisava assumir os riscos cambiais de todas as opera��es, e assim por diante. (N�o esque�amos: num primeiro momento, o investidor estrangeiro transforma d�lares em reais, para operar dentro da economia brasileira; no futuro, ele precisar� sair do real e retornar ao d�lar, para realizar seu lucro na moeda que interessa aos seus acionistas; por isso, a rela��o entre o real e o d�lar, hoje imprevis�vel, passa a ser decisiva para determinar se ele ter� lucro ou preju�zo; � o "risco cambial" do neg�cio.)

Muitos outros problemas se acumularam, pois n�o faltavam contradi��es no novo modelo, nunca dantes testado. Problemas nos quais o governo nunca pensara, porque n�o entende do ramo. Exemplos. Como, na maior parte do tempo, o Brasil tem sobra de energia hidrel�trica barata, e como o Operador Nacional do Sistema � quem define em cada momento que energia ser� efetivamente jogada na rede, as usinas t�rmicas desejadas pelo governo fatalmente permaneceriam desligadas nos anos de boas chuvas. Que investidor privado aceitaria construir essas usinas sem contratos de longo prazo, com pre�o certo e garantido? Mas, que distribuidoras aceitariam assinar esses contratos em um momento de alta do pre�o do g�s, sabendo que, pelas novas regras, elas perderiam seus consumidores cativos em 2005, quando se estabeleceria a concorr�ncia tamb�m nessa ponta do sistema? Por outro lado, j� em 2002 geradoras e distribuidoras seriam livres para negociar seus pre�os. Logo, era essencial que a ag�ncia reguladora (Aneel) definisse a chamada "refer�ncia externa do pre�o da energia", tendo em vista proteger os consumidores contra acordos abusivos, firmados pelas empresas. Mas, com que crit�rios a Aneel poderia definir tal refer�ncia, se o rec�m-criado mercado spot estava sujeito a varia��es gigantescas de pre�os, e se n�o existem no Brasil mercado futuro de energia nem consumidores livres?

Impasses desse tipo, sempre renovados, foram paralisando as decis�es. Criou-se um gritante descompasso entre a velocidade de desmonte do modelo anterior, que era de lebre, e a velocidade com que se conseguia fazer avan�ar a implanta��o do novo modelo, que simplesmente empacara. Em relat�rios, reuni�es e semin�rios, os especialistas multiplicaram alertas: "Sem investimentos em gera��o e transmiss�o, continuamos gastando os estoques de �gua. A capacidade do sistema vai se esgotar. As curvas de oferta e demanda se cruzar�o nos pr�ximos anos." O Plano Decenal da Eletrobras - documento oficial, publicado em 1998 -, afirmava que 2000 seria "cr�tico" em rela��o a risco de d�ficit. Ainda era tempo. As privatiza��es poderiam ser suspensas, mantendo nas m�os do governo a capacidade de gerenciar um estoque regulador de energia barata. As empresas estatais de energia, entesouradas em pelo menos R$ 30 bilh�es, poderiam ser autorizadas a retomar os investimentos em grande escala (Furnas, por exemplo, afirma ter R$ 10 bilh�es parados, por ordem do governo). O BNDES poderia ser liberado para somar-se a elas nesse esfor�o. Problemas relativamente simples de transmiss�o, que exigiam investimentos pequenos, permitiriam otimizar o sistema um patamar mais adequado. Uma pol�tica agressiva de conserva��o de energia contribuiria. Novas t�cnicas de gera��o distribu�da, co-gera��o e energias alternativas estavam dispon�veis. A montanha, por�m, n�o se moveu.

Chegamos a um ponto crucial deste artigo, o de compreender o incompreens�vel: partindo de um sistema reconhecidamente confi�vel e repleto de reservas, como foi poss�vel cairmos em um buraco negro? Por que a crise, anunciada com tanta anteced�ncia, n�o foi detida e revertida? Como p�de o sistema marchar para o suic�dio, como se fosse uma fatalidade? Para tal, temos de compreender como os agentes relevantes do novo modelo se comportaram ao enxergar a crise que se agigantava. Imaginemos que, em 1998, um extraterrestre preocupado com o destino do Brasil procurasse esses agentes, perguntando o que cada um estava fazendo, diante da aproxima��o do colapso. Eis o que ele ouviria:

(a) Do Operador Nacional do Sistema: "Mais do que ningu�m, eu vejo a aproxima��o da crise, pois sou respons�vel pela opera��o f�sica do sistema. Mas, na nova divis�o de tarefas, minha responsabilidade � otimizar a oferta de energia em cada momento, atendendo a demanda que cresce. Sem investimentos, sem novas usinas geradoras, sem linhas de transmiss�o, resta-me esvaziar os reservat�rios, para cumprir minha miss�o no presente, e enviar relat�rios ao governo, alertando-o para a situa��o. � o que tenho feito".

(b) Do Minist�rio das Minas e Energia: "N�o posso liberar os investimentos das empresas ainda estatais de energia, pois elas est�o submetidas ao Conselho Nacional de Desestatiza��o, comandado pelo pessoal da Fazenda. Informei o presidente sobre o risco de d�ficit, apontado nos relat�rios do ONS. O presidente est� atado pelos acordos com o FMI, mas apoiou o programa emergencial que concebi, que prev� a constru��o de 49 usinas t�rmicas, dando aos investidores garantias sobre o pre�o futuro do g�s".

(c) Das distribuidoras (parte totalmente privatizada do sistema): "Eu tamb�m sei que a crise est� em curso, mas por favor compreenda minha situa��o. Neste momento, estou coberta por meus contratos com as geradoras. Se eu contratar mais energia agora, para proteger meus consumidores, terei de estabelecer contratos de vinte anos a US$ 40 o mWh, pois o g�s est� muito caro. Sei que este pre�o tende a cair. N�o poderei repassar o sobrepre�o atual aos consumidores, pois a Aneel n�o me deixa. Mesmo que deixasse, n�o resolveria o problema, pois meus consumidores ficar�o livres para escolher outras distribuidoras em 2005. Contratar agora energia nova, induzindo investimentos em gera��o, me levar� � fal�ncia. Prefiro ficar parada onde estou. Se, pelo menos, eu pudesse fazer contratos mais curtos..."

(d) Dos investidores privados em gera��o (novos agentes do sistema): "Eu tamb�m sei que se aproxima uma crise. Mas, por favor, n�o me venha a Aneel tentar me impor contratos mais curtos com as distribuidoras, pois eles n�o garantem o retorno do investimento que eu deveria fazer. Por outro lado, esse s�bito aumento no pre�o do g�s importado refor�a a necessidade de prote��o cambial, pois minha moeda de refer�ncia � o d�lar. Fiquei muito inseguro com este novo c�mbio flutuante. N�o posso assinar, sem prote��o, contratos de vinte anos, comprometendo-me a entregar uma energia que depende de um g�s cujo pre�o n�o sei qual ser�. Al�m disso, o governo de voc�s est� preparando a privatiza��o de Furnas, que � uma galinha gorda, pronta para dar uma bela canja, enquanto por aqui o governo americano tamb�m est� iniciando um programa de termel�tricas. Prefiro esperar para escolher, na hora certa, a op��o mais segura e rent�vel. Com a aproxima��o da crise, talvez as autoridades brasileiras fiquem mais sens�veis...".

(e) Da ag�ncia reguladora (Aneel): "Sei que todos esperam que eu defina o valor normativo, ou 'refer�ncia externa', da energia, de modo a estimular os contratos. Mas n�o tenho nenhum crit�rio objetivo para fazer este c�lculo. A Fazenda n�o me deixa soltar um valor alto demais, pelo impacto na infla��o. Os investidores n�o aceitam um valor baixo demais. Por outro lado, as distribuidoras n�o aceitam contratos longos em energia t�rmica, pois o pre�o atual do g�s est� muito alto. Com contratos curtos, os investidores n�o investem. Como posso regular esta mix�rdia?"

(f) Do Minist�rio da Fazenda: "N�o estou seguro que se aproxime uma crise energ�tica, isso � coisa do tempo dos nossos av�s. Nem me lembro quando tivemos a �ltima. Essas incertezas s�o naturais, fazem parte do processo de altera��o da matriz energ�tica e da transi��o para o mercado. Quanto �s amea�as de colapso, s�o apenas lobby. Querem hedge cambial, querem tarifas indexadas, querem mexer em contratos j� assinados, isso cheira mal. Sou respons�vel por tr�s tarefas consideradas priorit�rias pelo presidente da Rep�blica: garantir super�vit fiscal, manter a infla��o dentro das metas e concluir a privatiza��o do setor el�trico. Todas elas refor�am minha posi��o de reter recursos no caixa do governo. Grandes investimentos, feitos por empresas estatais, s�o coisa do passado. Al�m disso, ningu�m gosta de comprar empresas que estejam iniciando projetos vultosos, pois isso imobiliza muito capital e dificulta uma r�pida distribui��o de dividendos. Se o mercado funcionar, tudo se arranja."

Fi�is �s suas pr�prias l�gicas, nenhum dos atores era capaz de deter a crise. Pior: v�rios deles n�o desejavam fazer isso, fosse porque implicava um n�vel exagerado de exposi��o ao risco, fosse porque uma crise controlada impulsionaria a transi��o desejada. Restava s� uma carta: Petrobras. Com os investidores privados pulando fora e a situa��o energ�tica se agravando, o ministro Tourinho apelou para que a velha e boa estatal constru�sse as t�rmicas salvadoras. Do ponto de vista estritamente empresarial, uma opera��o arriscad�ssima. Ela aceitou, assumindo para si o risco cambial. Por qu�? Primeiro, a Petrobras estava com um mico preto na m�o: o famoso gasoduto Brasil-Bol�via, inaugurado em 1998, ainda opera com menos de 40% de sua capacidade, por falta de demanda. Com um agravante: o contrato que a Petrobras assinou � do tipo take or pay. Ou seja, a empresa � obrigada a pagar por todo o g�s que poderia ser entregue, usando-o ou n�o. Estava tendo um preju�zo financeiro gigantesco, que justificava o risco igualmente gigantesco do novo neg�cio. Por outro lado, entrando diretamente na produ��o de energia el�trica, ela diversificaria sua atua��o, podendo fortalecer sua posi��o estrat�gica, e ainda por cima ajudaria o governo em um momento dif�cil, tornando-se sua credora moral.

Montado para ser privatista, na hora da crise o modelo ca�a de novo no colo do Estado, mas j� inteiramente comandado pela l�gica do capital privado. Pois, estruturado historicamente na base hidrel�trica, que � coerente com nossa dota��o natural de recursos, o enorme sistema energ�tico brasileiro, na pr�tica, fora levado a abandonar o potencial h�drico inexplorado, sua maior vantagem comparativa no mundo atual. J� se movia puxado por um fio imagin�rio, atado em uma ponta metaf�sica. As t�rmicas, em torno das quais tudo passou a girar, simplesmente n�o existem! E, em condi��es normais, n�o s�o (nem ser�o) necess�rias para atender a demanda! O rabo passara a abanar o cachorro. Um cachorro cot�!

Ionesco, Beckett, Kafka, todos os surrealistas, fostes humilhados!

Foi loucura, mas houve m�todo nela. Todos agiram segundo sua pr�pria l�gica, e a soma das l�gicas particulares � que produziu uma paralisia geral diante da crise anunciada. N�o houve acaso: no novo modelo, ningu�m mais � respons�vel pelo problema energ�tico brasileiro como um todo. A taxa de risco - historicamente mantida sempre abaixo de 5% - fora deixada solta, ao sabor do mercado. Mas, ainda t�nhamos energia dispon�vel, gra�as �s velhas reservas de �gua, que estavam indo embora. O tempo corria contra n�s. Em agosto de 1999, o risco de racionamento atingiu 30%. O ministro Tourinho consultou os orix�s da Bahia e apostou. Afinal, tinha 70% de chances de n�o-racionamento, e precisava de tempo para deslanchar o programa das t�rmicas, agora apoiado pela Petrobras. Em dezembro, as reservas h�dricas do sistema chegaram no ponto mais baixo da hist�ria: 18%. O risco de black-out foi a 50%. O n�vel dos reservat�rios passou a ser acompanhado dia a dia, os relat�rios passavam de m�o em m�o, mas qualquer alerta que vazava para a imprensa era logo desmentido. Enredado na teia que ele pr�prio montara, o governo optara pelo sil�ncio.

Em janeiro e fevereiro de 2000, choveu extraordinariamente. S�o Pedro n�o nos faltou. Os reservat�rios encheram de novo, embora sem retornar a n�veis minimamente seguros. Como n�o veio a crise anunciada, o pessoal da Fazenda confirmou sua impress�o de que tudo n�o passava de um gigantesco lobby. Foi cuidar do que sabe fazer e do que acha importante fazer: conter investimentos e produzir super�vit cont�bil para ficar de bem com o FMI. Gra�as a essas chuvas excepcionalmente fartas, ultrapassamos 2000 sem crise energ�tica aparente. Chegamos em dezembro com os reservat�rios em 28%. Beleza. Um ano antes, estavam em 18% e n�o houve problema. Por que haveria em 2001? Racioc�nio med�ocre, mas que encheu Fernando Henrique de alegria e coragem. Tanta coragem que, em fevereiro deste ano - h� apenas tr�s meses! -, ele resolveu fazer gra�a. Para faturar em cima dos reclamos populares por mais seguran�a, foi �s televis�es anunciar o Projeto Ilumina��o P�blica Eficiente (Projeto Reluz), voltado para "tornar eficientes 8 milh�es de pontos de ilumina��o p�blica e instalar um milh�o de novos pontos eficientes." Para o meio rural, lan�ou o Programa Luz no Campo, que tinha como meta "levar energia el�trica a um milh�o de propriedades e domic�lios at� 2002." Comprometeu-se tamb�m a "zelar pela seguran�a para o investidor privado e os direitos do consumidor quanto � oferta de energia, a qualidade dos servi�os e a modicidade das tarifas." O presidente enlouquecera, houve quem acreditasse.

Se voc� joga dois dados e tira uma dupla de seis, comemore. Mas n�o tente de novo. Prud�ncia, no entanto, n�o � o forte de um governo dominado por financistas e especuladores. Eles gostam de apostar. No lance de 2001, S�o Pedro nos sorteou uma dupla de um. Choveu bem menos que a m�dia. Como o sistema vinha operando com a chuva de cada ano, a crise emergiu. O presidente se disse surpreso, chocado. Lu�s Pinguelli Rosa rebate: "A surpresa do governo com a crise � uma farsa. Ele foi exaustivamente avisado, por mim e por outros colegas, em muitas ocasi�es, desde pelo menos cinco anos atr�s. N�o somos g�nios nem adivinhos. Bastava verificar a evolu��o das curvas de oferta e demanda e verificar onde elas se cruzariam. Deveria ter sido em 2000, mas nesse ano tivemos sorte." O sistema el�trico brasileiro, com seus grandes reservat�rios, permitiu que se fizessem barbaridades durante cinco anos, sem que a sociedade percebesse, pois havia reservas acumuladas. Um sistema de base t�rmica resistiria poucas semanas, se tanto. Agora, por�m, essa mesma in�rcia est� contra n�s: nosso combust�vel n�o pode ser comprado em nenhum mercado, a pre�o nenhum. Depende de novas chuvas, fartas. A amea�a que paira sobre o Brasil n�o � a de ter de pagar mais caro para manter-se ligado e aceso. A amea�a �, pura e simplesmente, a de entrar em colapso. Justamente porque o combust�vel de que precisamos n�o se compra, nosso sistema anterior de planejamento energ�tico - hoje desmontado - era t�o cuidadoso, preferindo errar por excesso de cautela, nunca por irresponsabilidade.

Quando a crise n�o podia ser mais escondida, o presidente mostrou na televis�o um gr�fico (histograma) para dizer que os governos Fernando Collor (1989-1992) e Itamar Franco (1992-1994) eram os culpados. Os investimentos em energia teriam diminu�do naqueles per�odos e se recuperado espetacularmente durante os seis �ltimos anos. Hoje sabemos que os dados de Fernando Henrique:

  • consideravam como "investimento" o dinheiro das privatiza��es, que apenas transferiram a propriedade de empresas j� existentes e n�o aumentaram em nenhum megawatt-hora a capacidade instalada; 

  • inclu�am a gera��o feita em usinas da Argentina e do Uruguai, de onde o Brasil, nos �ltimos anos, passou a importar eletricidade (algo t�o bizarro quanto a Ar�bia Saudita transformar-se em importadora de petr�leo!);

  • faziam dupla contagem de 1.000 mWh gerados no sistema Norte, pois o presidente considerou que a linha de transmiss�o Imperatriz-Bras�lia acrescentava 1.000 mWh ao sistema, quando, como diz o nome, ela apenas transmite essa energia do Norte na dire��o do Sudeste.Dos 5.200 mWh que Fernando Henrique mostrou como conquistas de seu governo, 2.500 mWh eram falsos. No exerc�cio do mandato, em plena crise, lidando com uma quest�o vital, o presidente do Brasil mentiu deliberadamente � na��o. 

Criou-se uma situa��o in�dita, que ainda n�o foi corretamente dimensionada pela opini�o p�blica. Em tempos de paz, nenhum governo do mundo jamais colocou o seu pa�s sob risco t�o alto como o governo de Fernando Henrique Cardoso. O Operador Nacional do Sistema prev� que chegaremos em novembro com apenas 10% dos reservat�rios preenchidos, a menos que ocorram chuvas muito improv�veis em agosto, setembro e outubro. No pior momento, at� hoje, operamos com 18%. Talvez o presidente e sua equipe econ�mica n�o saibam - afinal, o que eles sabem? - de uma informa��o crucial: se chegarmos nesse n�vel, ignora-se o que poder� ocorrer. As turbinas instaladas no Brasil s�o programadas para gerar energia em 60 hertz (ou 60 ciclos por segundo) e s� podem faz�-lo nesta freq��ncia, pois todas as nossas m�quinas, equipamentos e eletrodom�sticos est�o ajustados a ela. Isso exige que as turbinas mantenham, com estabilidade, uma certa velocidade de rota��o. Quando a coluna d'�gua diminui, o peso da �gua tamb�m diminui e o fluxo se torna menos est�vel, exigindo que as turbinas fa�am mais esfor�o para manter a rota��o programada. Se o esfor�o for excessivo, os sistemas de prote��o entram em a��o automaticamente, interrompendo a gera��o. Ocorrem quedas s�bitas e descontroladas, que podem ser seq�enciais, por sobrecarga. Se o n�vel de 10% for de fato atingido, o sistema el�trico brasileiro, que j� foi refer�ncia mundial, n�o ter� mais confiabilidade operacional. N�o se trata de hip�tese long�nqua. Ao contr�rio, � a mais prov�vel. O relat�rio 19-2001 do Operador Nacional do Sistema, que aponta esse cen�rio, previa que o armazenamento nas regi�es Sudeste e Centro-Oeste estivesse em 33% no in�cio de junho. Em meados de maio, essas regi�es j� estavam com 29,7%. Mesmo assim, no momento de fechamento desta mat�ria, o governo brasileiro e a Rede Globo de Televis�o ainda passam para a opini�o p�blica a id�ia de que o pa�s vive a incerteza de fazer ou n�o fazer racionamento, e que a sociedade � quem vai decidir sobre isso, ao decidir entre esbanjamento e racionaliza��o do consumo individual. Depois de cinco anos de desgoverno, a incerteza que est� colocada diante de n�s � bem outra. � entre racionamento e colapso. O tempo e a sorte passaram a ser os elementos decisivos.

Em vez de reconhecer a gravidade da crise e trabalhar para enfrentar o pior cen�rio, o governo resolveu apostar novamente. Se chover bastante nos pr�ximos meses (o que n�o � prov�vel, pois a esta��o � seca), passaremos raspando, sofrendo os inconvenientes j� bem conhecidos. Se n�o chover excepcionalmente, o pa�s apagar�. Chegaremos ao caso-limite de lan�ar uma sociedade em um salve-se-quem-puder, de destruir fisicamente uma grande economia, sem guerra externa, apenas pela implac�vel aplica��o de uma ideologia, chamada neoliberal. Que Deus nos proteja.

 

Nota: * Este artigo n�o poderia ter sido escrito sem conversas do autor com tr�s especialistas em energia: Lu�s Pinguelli Rosa (vice-diretor da Coppe/UFRJ), Roberto d'Ara�jo (diretor do Instituto Ilumina) e Sebasti�o Soares (ex-diretor do BNDES), que tamb�m forneceram generosamente fontes de consulta. Na correria final, nenhum deles p�de ler o texto, sobre o qual n�o s�o respons�veis. Um quarto especialista, igualmente generoso, pediu que seu nome n�o fosse citado, por causa da fun��o que ocupa. Minha homenagem a ele fica por conta da reprodu��o de uma de suas �ltimas frases em nossa conversa: "Estou deprimido. O sistema el�trico brasileiro � generoso, nos d� muito tempo para corrigir bobagens eventuais. S� n�o admite cinco anos de bobagens. A� ele se torna cruel."

 

C�sar Benjamin � editor. Autor de "A op��o brasileira" (Rio de Janeiro, Contraponto Editora, 1998) e integrante da coordena��o nacional do Movimento Consulta Popular.