Embora a maioria de nós a deseje, a
longevidade não está ao alcance de qualquer um. Apesar das opiniões de
doutos especialistas – demógrafos, médicos, etc. – o que acaba
sendo decisivo é uma bruta sorte, com a mão leve do destino escolhendo
um número relativamente pequeno de sujeitos que terão uma vida bem
comprida.
Porém, não basta viver mais;
fundamental, certamente, é ter uma vida bem vivida. E, para alguns, essa
vida longa é ainda sinônimo de notoriedade em toda a sua trajetória.
Dois brasileiros estão vivendo agora o
tempo que os aproxima dos cem anos. Eles são bem diferentes. Tudo indica
que a única coisa que pode aproximá-los é justamente sua longevidade,
além do fato de terem se notabilizado em suas respectivas trajetórias.
Esse dois brasileiros são Dercy Gonçalves
e Oscar Niemeyer. Ambos completam 99 anos.
Dercy, como sabemos, é um monumento da
cultura artística nacional. Embora não se constitua uma unanimidade,
por conta de seu comportamento desabrido, suas atitudes polêmicas –
como aquela de mostrar os seios "em pleno Sambódromo", num
enredo em que era merecidíssimamente homenageada – todos são unânimes
em reconhecê-la como uma grande dama do teatro, do cinema e da televisão.
Niemeyer também é quase uma
unanimidade, exceto para os que o consideram um “dinossauro” ideológico,
ao manter sua intransigente defesa do comunismo. Apesar disso, é
reconhecido mundialmente com um gênio da arquitetura.
Dercy brilhou sempre, e para isto lutou
contra todos os preconceitos, desde quando, menina rebelde e desejosa de
materializar seu sonho de ser artista, largou a cidadezinha natal, Santa
Maria Madalena, acompanhou um circo mambembe e não somente chegou ao
estrelato, mas arrebentou com todas as resistências e abriu caminho para
o reconhecimento, a emancipação e o respeito pelas mulheres na vida artística.
Niemeyer, saindo de um patamar sócio-econômico
bem mais elevado, nem por isso lutou menos, brigou menos e defendeu menos
ardorosamente suas idéias inovadoras. E também abriu caminhos que
levaram não apenas ao reconhecimento de sua genialidade, mas ao respeito
pela arquitetura brasileira.
Ver Dercy nas chanchadas do cinema
nacional é ver um vulcão de inventividade, de improviso, de muita
espontaneidade. No teatro, seus “cacos” ajudaram a demolir aquele ranço
europeu de interpretação pomposa e enfatuada. Na TV, não precisamos
lembrar mais nada senão sua completa e imediata identificação com a
linguagem do povão.
As curvas de Niemeyer igualmente nos
encantam pela invenção, e nos conduzem num vôo de liberdade, que
contaminou até o peso e a rudeza do concreto, tornando-o leve e
conferindo-lhe movimento.
As palavras de Dercy, com freqüência
chocam. Seu famoso recurso aos palavrões, de tão bem colocados em seus
discursos diretos e desabridos, mudou a relação de praticamente todo
mundo com a linguagem chula, ao ponto de serem absorvidos até por
pessoas muito tradicionais.
Niemeyer fala pouco, baixo e
compassadamente. Sua discrição é notória. Mas seus traços na
prancheta são igualmente contundentes, como xingamentos lançados contra
visões arquitetônicas tradicionais, poluídas por volutas ou
sufocadoras dos seres humanos e agressoras da paisagem.
Dercy tem o palco. Ou todos os palcos
onde a energia criativa da artista explode e contagia. Niemeyer tem Brasília
como seu maior palco, onde encenou em concreto o sonho do “presidente
bossa-nova”, cidade ímpar, cujo brilho arquitetônico incomparável não
é empanado nem pelas mazelas que cercam o poder central.
Dois brasileiros longevos, criativos,
inovadores, iconoclastas. Nesta medida, Dercy e Niemeyer encarnam a própria
brasilidade, como se tivessem vindo ao mundo não somente para permanecer
nele por muito tempo, mas para expressar duas facetas da alma brasileira.
Quase cem anos cada um! É tempo à beça.
Dercy e Niemeyer, cada um a seu modo, cada qual do seu jeito, não
somente foram testemunhas de uma boa parte de nossa história como
ajudaram a escrevê-la.
Que eles permaneçam entre nós ainda
por um bom tempo, dando-nos exemplos de vidas bem vividas.
Luz na ribalta! Luz suave na prancheta!
Parabéns Dercy! Parabéns Niemeyer!
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