Nos aviões, a gente já se acostumou.
Antes da decolagem, uma aeromoça, com seu coquezinho no cabelo, uniforme
impecável, fala automática e gestos graciosos, diz:
- Senhores passageiros, esta aeronave
possui três saídas, localizadas no fundo, no meio do corredor e na
parte da frente. Em caso de despressurização, máscaras cairão...
Depois de simular as tais máscaras
caindo, ela prossegue imperturbável, ignorando os olhos esbugalhados de
alguns, as mãos suarentas de outros e o ar blasé dos passageiros
velhos de guerra.
Essa cena é infalível porque obrigatória.
Trata-se de uma exigência das normas internacionais de segurança de vôo.
Nos cruzeiros marítimos, as normas de
segurança também se impõem. Só que a coisa é bem diferente, e mais
divertida.
Antes da partida, realiza-se um simulado
de incêndio. Esse exercício é bem divulgado, inclusive no jornalzinho
de bordo. É obrigatório para todos, e mobiliza o navio inteiro.
Eu nunca vestira um salva-vidas. Em
minhas travessias de barca entre o Rio e Niterói cansei de ver esses
coletes, com sua cor laranja-cheguei, dormitando tranqüilos e
empoeirados em prateleiras acima das cadeiras.
No navio, os coletes salva-vidas ficam
nos armários, nas cabines.
No dia e hora marcados, começa o
simulado. Aliás, ele começa antes, no zum-zum-zum dos comentários, na
recepção, nos corredores. Muita gente deseja saber do que se trata; vários
zombam, fazendo as inevitáveis piadas sobre naufrágios. O caso mais
lembrado, claro: o do Titanic – na realidade e no filme.
Eu estava em calma, de espírito e estômago,
depois de um farto café da manhã. Após vencer um ovo quente, um
iogurte, frutas e pãezinhos com geléia, bebericava uma xícara de café
com leite, enquanto olhava o movimento matinal no porto, deixando o
pensamento navegar antes de mim na expectativa da viagem. De repente –
não mais que de repente, como diria o poetinha -, o apito do navio soou,
logo depois que uma voz estridente, vinda dos alto-falantes, anunciou que
o simulado de incêndio seria realizado.
Já tinha, claro, ouvido apitos de
navio. Eles têm um som único, cavo, poderoso. Sempre que os ouço, fico
imaginando se não foram acionados por ordem do próprio Netuno, num
convite sinistro para uma visita às profundezas...
Porém, de perto, o apito parece ainda
mais poderoso e assustador. Forte, chega a provocar uma certa trepidação;
todos os demais sons – vozerio, máquinas, barulho de bandejas sendo
empilhadas, de xícaras que colidem no põe e apanha dos que as utilizam
– são abafados.
Ao saber desse exercício, fiquei
imaginando uma confusão danada. Afinal, mesmo se tratando apenas de uma
simulação, sem o sal do verdadeiro pânico, não é fácil mobilizar
mais de 1800 pessoas, entre passageiros e tripulantes.
Funciona assim: divididos por setores,
designados por letras, previamente informados por um comunicado deixado
nas cabines, todos os passageiros e a tripulação têm de se reunir nos
conveses, com calma porém em tempo curto.
É divertidíssimo observar toda essa
movimentação, nos corredores, pelas escadas e nos halls de
elevadores.
Vestir colete salva-vidas deixa qualquer
um engraçado. E, como as instruções em inglês parecem inacessíveis
para a maioria, embora haja desenhos bem explicativos, tinha gente até
com o colete vestido de cabeça para baixo!
Havia gente gorda que ficou imensa
enfiada no colete; gente magérrima que engordou de repente com aquele
casacão acolchoado; pais e mães, com seus filhos – seus coletes
pareciam ter dado filhotes, os coletes de seus filhos.
Muitos não escondiam o nervosismo,
apesar de ser apenas uma simulação. E os coletes, bem desconfortáveis,
parecem contribuir para que as caras surjam mais afogueadas, os pescoços
sufocados e as barrigas espremidas.
Contribuindo para uma inevitável
hilaridade, cada colete traz um apito. Não deu outra, evidentemente:
depois de alguns momentos de tensa seriedade, ao final do exercício que
deu certo, com todos reunidos nos seus respectivos locais determinados, o
primeiro engraçadinho fez trilhar o seu apito.
Foi uma loucura. Os pi-pi-pis se
sucederam. O navio virou um jardim-de-infância para adultos, numa
algazarra que marcou o fim da tensão.
Apesar dessa engraçada orgia, numa
profusão de laranjas dos coletes salva-vidas, a manhã continuou
luminosamente azul, e o mar profundamente verde.
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