A névoa da madrugada ainda envolve
tudo, resistindo às investidas dos raios cálidos e dourados da manhã.
Ela já está de pé, na casa de subúrbio. Prepara-se para mais um dia.
Olha que coisa mais linda, mais cheia de
graça. É ela, menina, que se olha no espelho e que, aos poucos, vai
transformando uma cara estremunhada num belo rosto, de traços marcantes,
de pele morena e olhos meigos, brilhantes e vivazes. Tudo isso sem o
milagre dos cosméticos caríssimos, mas apenas com bom senso, bom gosto
e os poucos produtos que seu parco ordenado permite comprar.
Espreguiçando, despe-se de suas roupas
de dormir e observa o corpo esguio, bem torneado, sensual, de curvas
caprichosas e bem localizadas. E vai se vestindo com roupas simples:
lingerie bem adequada, em cores, textura e formato, que envolvem seu
corpo e o tornam sedutor; uma blusinha modesta, mas que se adapta a suas
formas, destacando as proporções perfeitas de seu talhe, onde o busto
se destaca, nem grande nem pequeno; uma calça jeans já bem usada mas
que, no entanto, guarda beleza na simplicidade do azul desbotado que
combina com tudo; uma sandália barata porém elegante, que lhe deixa
quase inteiramente à mostra um pezinho bonito.
O tempo urge: um beijo na mãe se segue
ao café simples preparado por essa mulher lutadora e zelosa guardiã da
filha querida.
Sai de casa e caminha apressada pela rua
de terra, desviando-se de buracos e de valas negras. Atenta aos vultos e
barulhos, tem o peito em sobressalto, forçada pela necessidade a
expor-se nessa hora matinal. Ouve, como em todas as manhãs, a sinfonia
de latidos de cães vagabundos, que duelam com outros cães, igualmente
vira-latas, mas que têm pelo menos o privilégio de um quintal.
O trem está apinhado, como sempre.
Hoje, com a sorte de ter arranjado um lugar para se sentar, sucumbe em
muitos momentos ao cansaço, com um cochilo reparador. Quando abre os
olhos, tem de desviar o olhar dos olhares impudicos de homens barrigudos
que a fitam com se a despissem. Mas, vaidosa, percebe também os olhares
interessadíssimos de muitos rapazes - alguns até parecendo
interessantes -, jovens lutadores como ela.
Mais de hora e meia depois, de cansaço,
suor e sacolejos, ei-la caminhando pela grande avenida no centro da
cidade É ela, menina, que vem e que passa, num doce balanço a caminho
do trabalho.
Caminha a passos firmes; meneia
naturalmente os quadris, sem movimentos calculados, sem afetação. E o
seu balançado é mais que um poema; é a expressão de uma beleza real,
de uma sensualidade natural. Só tem tempo de ceder um momentinho à
vaidade: antes de entrar no prédio, olha-se na vitrine, que reflete a
beleza da garota de subúrbio.
No escritório, desdobra-se em
gentilezas; aplica-se em favor da eficiência; e tem de conciliar a
capacidade profissional com a simpatia pessoal. Lida com pessoas, e gosta
disso. Seus dentes muito alvos, sempre à mostra em sorrisos constantes,
ajudam a dar-lhe com vantagem o título de a garota mais bonita e mais
simpática da empresa.
Além de cuidar do trabalho, de
perseguir a competência, essa garota ainda tem de esquivar-se das inevitáveis
cantadas, do assédio mal contido e do machismo sem rodeios. Isto sem
falar na pontinha de inveja, às vezes mal disfarçada, de colegas
gordinhas e mal-amadas...
Fim do dia e lá vai a garota de subúrbio
para mais uma jornada: do centro, de ônibus, ao bairro onde fica a
faculdade em que estuda. Mais esforço, acúmulo de cansaço, empenho
para aprender, conquistar um diploma e tentar melhorar de vida.
E lá está nossa garota, desfilando sua
beleza simples e sólida nas salas e corredores da faculdade, despertando
o interesse e atraindo os olhares cobiçosos, lânguidos e desejosos de
muitos colegas.
Depois das aulas, já noite adentro, a
rotina da volta: o ônibus, o trem, o sobressalto de voltar tarde por
ruas quase desertas. Finalmente, a acolhida materna, que se junta agora
ao beijo de boa-noite do pai trabalhador, já sonolento diante da TV.
Garota de subúrbio. Ah, se ela soubesse
que, quando ela passa, o mundo inteirinho se enche de graça, uma graça
que ultrapassa de muito a beleza física e reflete o belo de sua
dignidade, o magnífico de sua luta.
Você é um amor, garota de subúrbio. E
o mundo fica mais lindo por causa de você. Por causa do amor.
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