Alma Carioca



DECLARAÇÃO (OU PELO AVESSO)

J. Carino

Saibam todos: nunca mais vou cair na armadilha do lusco-fusco da tarde, que umedece olhos e amolece corações. Doravante, serei surdo aos ruídos carinhosos que enchem sutilmente de sons os momentos da morte relutante do dia: um cão que ladra; um trem que apita inconcebivelmente; um galo traidor que desloca seu ofício para longe da madrugada; uma freiada de carro contrariada num sinal luminoso; a música de um rádio derramando-se através da janela carcomida e mal pintada da casa velha e mal conservada; o som de sinfonia desconcertante das goteiras depois da pancada de chuva.

Anotem: jamais ficarei novamente à mercê dessa beleza insinuante contida na tarde suburbana. Dessa usina submersa de poesia, que induz pobres almas sensíveis a mergulhar no sonho, a construir inúteis poemas; que faz com que tímidos apaixonados se transformem em escandalosos menestréis.

Registrem: recuso-me a ver o belo que há na saída barulhenta dos jovens da escola; na caminhada aparentemente tranqüila dos operários que deixam a fábrica, felizes na ignorância dos explorados; no passo cadenciado, bamboleante e sedutor das jovenzinhas em flor, expectantes e ansiosas, envolvidas no jogo da sedução.

Declaro-me rompido com essas coisas simples e vitais: com os últimos raios de sol coados através das folhas das mangueiras de quintal; com o arco-íris das roupas rotas penduradas nos varais; com o arrulho de rolinhas nos infindáveis telhados que parecem um mar cor-de-telhas, ondeando por sobre casas simples; com a gota de orvalho que rola, lentamente, na folha de capim, até despencar e explodir contra a terra ensombranda do jardim, num suicídio em líquido e luz.

Renego os belos quadros, que são armadilhas coloridas para os olhos, mentes, corações - janelas traiçoeiras voltadas para a beleza, para o inusitado ou simplesmente para o chocante ou o enigmático; e os livros, essas profundidades abissais habilmente disfarçadas em páginas entre capas - mundos sedutores, irresistíveis, desafiantes, provocadores, intrigantes.

Repudio a poesia, fugindo espavorido dos cânticos de amor, das odes grandiloqüentes, dos sonetos redondos e apaixonantes, das rimas e dos versos livres, e até de assustadoras demonstrações de aguda sensibilidade vazadas em versos de pé-quebrado.

Rechaço a música. Nunca mais me deixarei enlevar por sons maviosos ou entusiasmar por estridentes fanfarras. Não me atravessarão os ouvidos nem me falarão ao coração: as imensas sinfônicas ou filarmônicas; as modestas bandinhas com suas retretas em coretos de pracinhas em cidades interioranas; ou solitários solistas nas ruas e praças, armando impunemente suas armadilhas sonoras para transeuntes apressados que carregam ouvidos moucos e almas impressionáveis.

Declaro tudo isso peremptória e solenemente. A tudo isso que foi declarado rechaço, repudio, renego. Mas, sobretudo, declaro-me inimigo, desafeto, rompido com quem quer que seja capaz de acreditar que há um pingo sequer de verdade nesta declaração.

Voltar às Crônicas

Página inicial do ALMA CARIOCA
Seções:
Rio de Janeiro
Turismo no Brasil e Viagens Nacionais
Turismo e Viagens Internacionais
Esportes
Olimpíadas Rio 2016 - Jogos Olímpicos e Paraolímpicos
Copa do Mundo Brasil 2014
Vídeos musicais nacionais
Vídeos musicais internacionais
Vídeos clips de músicas clássicas
Clipes musicais de filmes e trilhas sonoras
Melhores Sambas Enredo de Todos os Tempos
Vídeos de Mantras para Relaxamento e Meditação
Vídeos de músicas românticas internacionais e nacionais
Desenhos animados antigos da tv
Seriados antigos da tv
Trailers de filmes
Trailers de filmes clássicos de maiores bilheterias
Restaurantes, receitas e gastronomia
Crônicas
Bossa Nova
Rio Antigo
História Geral
História do Brasil
Geografia, Biomas brasileiros e ecossistemas
Artistas e celebridades

comments powered by Disqus

Política de Privacidade - Fale conosco
© 2001-2017 - Copacabana Internet