Tulipa Dourada
(Ao Templo Et�lico Flor do Leblon)
J.Carino
Aparentemente, um copo entre copos, com a monotonia da transpar�ncia
escondida e partilhada na caverna escura de um freezer. Num momento, o contato com a luz do dia. A tulipa v�-se, alinhada com outras, numa bandeja cheia de amassadinhos - marcas dos encontr�es di�rios com panelas,
talheres e pratos.
Em contato com o ar, a tulipa revela a penugem que a cobre: est� geladinha, contrastando com o calor abafado que contamina tudo no bar. Por isso,
dizem, se chama tulipa: as sementes das flores holandesas ficam muito tempo debaixo de terra coberta de gelo, antes de brotarem para a luz c�lida do sol.
Num instante, a tulipa j� est� sobre uma grade - misterioso sorvedouro de l�quidos. Sobre ela reluz uma torneira de metal polida todo dia por um
empregado zeloso.
U'a m�o h�bil gira a torneira. A tulipa - qual f�mea generosa - recebe o jato de chope, que a inunda. O l�quido gelado bate no fundo e gira enlouquecido, fabricando espuma, subindo pelas bordas, escorrendo numa dan�a de
desperd�cio.
Agora, a tulipa n�o � mais um copo; � uma j�ia. A transpar�ncia de cristal do vidro revela o dourado do chope. Mas � uma transpar�ncia que n�o se d�
assim t�o f�cil. � uma transpar�ncia que tanto revela quanto oculta, na medida certa. Acertou quem pensou numa compara��o com a transpar�ncia das
vestes da mulher amada: sempre provocando o olhar e acendendo o desejo; sempre negando a vis�o total, substituindo o gozo pleno por um latejar
frustrante e dorido.
A n�voa na face externa do vidro permite ao olhar apenas entrever o amarelo brilhante do l�quido. Got�culas - qual p�rolas cristalinas - rolam pela
superf�cie do copo; a espuma, branquinha, toma uma boa parte do conte�do: � o "colarinho", que faz a fama eterna de talentosos tiradores de chope, com sua pergunta fundamental: "Com ou sem?". O restante da tulipa � preenchida com o chope, um n�ctar dos deuses para os bebedores.
No bar, o burburinho invade todos os ouvidos. N�o se trata de um som �nico,
ensurdecedor. � um mosaico de sons. Ouvidos um a um, ainda fazem algum sentido: peda�os de conversas, som de gargalhadas, dedos tamborilando
sobre as mesas, o barulho que chega da rua: ronco de motores, sons de buzinas, uivos distantes de sirenes, o apito do guarda da esquina. D� at� pra
imaginar um b�bado de roupas amarfanhadas regendo essa polifonia rica e desencontrada, usando como batuta� um canudinho.
Mas as conversas � que s�o apaixonantes, em sua pluralidade, indo do
palavreado inconseq�ente para encher o tempo at� ao sussurrar t�mido das
confiss�es sa�das de l�bios liberados pelos efeitos do �lcool.
Num momento, a tulipa come�a a viajar. � um longo percurso de tr�s do balc�o, l� no fundo, at� a boca ressecada, a garganta sedenta que aguarda, impaciente, o l�quido refrescante.
�gil, o gar�om lan�a sobre a mesa o cart�o circular e colorido, a bolacha, com a serventia de permitir a contagem dos chopes bebidos. Mas quem contar� alguma coisa nessa confraria de mentes embotadas? Quem se importar� com a conta mal feita, que pode at� representar um dinheirinho a mais no bolso do
gar�om, encostado no portal, pernas cansadas, sonhando com o dia em que poder� rever sua nordestina terra pobre e ressequida; em que se sentar� na mesinha tosca da birosca para tomar um gole - como fregu�s! - consumando uma dessas pequenas vingan�as contra o destino que valem a vida.
Finalmente, a tulipa pousa sobre a mesa. � quando um raio de sol vagabundo - numa estranha boemia diurna - atravessa a varanda e banha o copo, transformando-o num prisma gelado, fazendo a luz explodir em mil cores.
Chegou o momento t�o ansiado. A m�o do bebedor empalma a tulipa. O contato gelado com a palma parece ir direto � alma, refrescando tudo, pondo o corpo a salvo do desconforto causado pelo calor abafado.
Agora, o instante supremo e m�gico: o bebedor leva o copo aos l�bios e
sorve um primeiro e pequeno gole. A espuma antecipa, prepara o prazer trazido pelo gosto do chope. Depois, um outro gole, generoso, pleno, fazendo o
l�quido dourado descer pela garganta, viajar refrescante pelas entranhas.
Com os olhos semicerrados, o bebedor v� um mundo diferente: mais lento, mais calmo, mais silencioso, mais acolhedor.
Aos poucos, um gostoso torpor invade corpo e mente, lan�ando dores,
preocupa��es e todas as mis�rias humanas a anos-luz de dist�ncia.
A conversa � retomada e segue pelos caminhos tortuosos de todas as
inconseq��ncias e incontin�ncias verbais; as mentiras, maiores ou menores, mais severas ou piedosas, v�o saindo das bocas desses confrades amigos, e se
diluem logo, desaparecem sem deixar vest�gios, como as got�culas que v�o
secando, uma a uma, na superf�cie externa da tulipa.
Agora, a paz do desejo de beber saciado, do esp�rito reconfortado, da b�n��o do esquecimento.
Daqui a pouco, o pedido de um novo chope, e o caminho da tulipa se far� novamente.
O bar fervilha de gente; as conversas continuam ecoando; abra�os nos que chegam, abra�os nos que saem - repetindo o ritual da amizade, sejam as
antigas, sejam as fugazes.
Pensando bem, n�o se trata de um bar. Olhando sobre as mesas, o que se v� � um grande jardim de tulipas douradas.
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