Alma Carioca

 



Doces Lunáticos

J. Carino


Ontem, uma lua rotunda e altaneira passeava sua altivez astronômica na noite do Rio. Estava linda essa jóia de prata no estojo de negrume do céu. Mas quem a via?

Não a via o executivo apressado, doido para jogar longe o paletó, afrouxar a gravata e afogar em uísque e alienação televisiva o restinho de um dia cansativo. Nem a gatinha malhadora, que preferia arriscar uma olhada provocativa ao seu vizinho de aparelho ergométrico, a olhar o céu pela janela escancarada à sua frente na academia.

A lua não era vista pelo motorista de ônibus, embrutecido pelo trabalho estafante ao lado de um motor barulhento e quentíssimo, com as canelas à mostra, palito na boca e uma flanela por dentro da gola da camisa aberta no peito.

Não via a lua a velhinha carinhosa com seu cão e insensível em face do mendigo deitado na calçada, pertinho de onde o lulu deposita o produto de necessidades fisiológicas que vão acabar passeando nas solas dos sapatos de transeuntes distraídos.

O menino que faz de sua bicicleta um bólido que serpenteia entre os pedestres na calçada e, milagrosamente, não atinge ninguém, também não vê a lua plena. Nem a menina de rabo de cavalo e narizinho empinado, que refaz o eterno caminho feminino entre a garota e a mulher.

No fundo negro da noite, lá ia a lua, imensa, generosamente prateando tudo. Quem a via?

Talvez a visse o gato vagabundo, fugido do falso aconchego de algum lar humano; ou o bêbado largadão, que poderia ver duas luas, compensando a ausência de atenção dos sóbrios que não viam nenhuma; ou aquele porteiro de prédio modesto, com o olhar vago em que havia, ainda, o brilho intenso de uma luz da lua vista na caatinga ressequida da terra natal, antes da viagem com jeito de para sempre num pau-de-arara.

O garçon do restaurante da esquina, equilibrando bandejas em meio à conversa fiada da gente de pilequinho e a fumaça de muitos cigarros na certa não a via; muito menos a PM, capaz de realizar o já grande milagre de ser e parecer feminina e graciosa dentro de sua farda sem graça.

O gari num horroroso uniforme cor-de-abóbora, que junta folhas, metódica e caprichosamente, como o banqueiro junta dinheiro, talvez visse a lua redonda e linda. Mas o pastor, que sobraçava a Bíblia enquanto andava apressado em direção à sua igreja - afoito para resgatar almas e garantir dízimos - com certeza não a via.

Ah, lua, lua, prateada amiga, eu a vejo criando essa senda de luz por sobre o mar - caminho quase irresistível na direção do horizonte. Vejo-a refletida em olhos marejados de amantes abandonados; na gota de orvalho que, miraculosamente, se equilibra na borda rendada da folha no jardim; na lágrima de peregrina beleza que rola por sulcos cavados pelo sofrimento numa face envelhecida.

Poder vê-la, lua de prata, é um privilégio; banhar-se em sua branca luz é uma necessidade dos que amam; sabê-la no céu, atravessando majestosa o imenso caminho no espaço sem fim, alheia à indiferença, é ter a certeza da onipresença da beleza, da perpetuação do sublime, da garantia de um milagre iluminador do mundo e, quem sabe, até das mais escuras profundezas da alma humana.

Lua, lua, nem todos podem vê-la assim, linda donzela na festa celeste do plenilúnio.

Os que a vemos continuaremos a seguir assim, loucos e banhados de luar, com os pés na terra e a alma na amplidão - doces e felizes lunáticos.

J.CARINO é professor universitário no Rio de Janeiro. Em meio ao cotidiano de aulas, orientações de alunos e à faina das pesquisas, encontra tempo para sua verdadeira paixão: escrever — poesia, crônicas, contos — ainda inéditos. Seu espírito divide-se entre a racionalidade filosófica e a magia da criação literária. E tudo se transfigura em invenção e lirismo. O texto acima, inédito,  nos foi gentilmente enviado pelo autor.

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