Tarde Cinzenta
J.Carino
A tarde de inverno é perfeita. O tempo nublado acinzenta tudo.
Mesmo os mais empedernidos cultores da agitação, do barulho, das cores, hoje se rendem a uma
certa passividade e melancolia. Os espíritos ensimesmados reinam; os ativos pagam tributo à
reflexão. Sem o sol, que provoca a rudeza dos contrastes, tudo é sutil, tudo é suave.
Tardes assim nos reconciliam com o efêmero. Longe das certezas
substanciais, ficamos flutuando entre as névoas da dúvida. A superficialidade, que aparentemente
plenifica, dissolve-se; acabamos ancorados no porto das insatisfações. E, ao invés de nos
perenizarmos como singularidade, desejamos subsumir na névoa... como a montanha e a tarde.
A vida sempre pára numa tarde assim. É como se tudo congelasse.
Moléculas, músculos, máquinas e espíritos interrompem seu furor produtivo e se rendem,
estáticos, à magia da tarde cinzenta.
Numa tarde assim, não há senão uma coisa a fazer: contemplar. O espírito,
carregando consigo um corpo por vezes contrariado, aquieta-se e divaga; torna-se receptivo a
tudo: aos mínimos sons, às réstias de luz que atravessam a névoa, ao lento e pesado progresso
que tudo conduz para o fim do dia, para o mergulho nas brumas da noite. As narinas absorvem
com prazer um odor que parece carregado de umidade; a pele sente o toque enérgico do frio. O
langor impõe-se e comanda esse estar-no-mundo como que suspenso por um tênue fio que nos liga,
timidamente, à vida ativa.
Nas tardes cinzentas o coração balança entre a paz e a inquietação,
porque a calma e o silêncio inquietam. O azáfama anestesia; o não-fazer deixa o espírito
alerta - como um nervo exposto a qualquer acontecer.
Não há jamais nada de espetacular nas tardes cinzentas, a não ser
o espetáculo da própria tarde. E este é grandiosamente simples: ar friorento, claridade difusa
que se perde no cinza, contemplação, inatividade e o contraditório do espírito aguçado e acuado
por esse acontecer minimalista da vida.
Na tarde fria e cinzenta, corpos se rendem ao aconchego de roupas
macias ou de braços macios em abraços suaves. Somente olhares e corações conservam o fogo das
paixões. As vozes agudas e imperativas transformam-se em sons baixos, quase guturais, que
muitas vezes convertem-se em sussurros, como temendo quebrar a magia da tarde.
Não nos iludamos com as aparências: não há necessariamente tristeza nas
tardes cinzentas. Mas também não existe aquela alegria inconseqüente dos dias cálidos e dourados
pelo sol. Existe, sim, um equilíbrio perfeito, numa eqüidistância entre o tédio e a euforia,
fazendo-nos caminhar sobre um tênue fio distendido entre o amargor e a satisfação, entre o
entusiasmo e o tédio. Tudo isso, porém, só se mostra aqui e ali, em meio à bruma difusa, ao
cinza que permeia tudo.
Uma simples tarde cinzenta pode parar o mundo, pode deter a vida.
Somente por um instante. Mas talvez apenas nos corações sensíveis.
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