Rog�rio Barbosa Lima
A restinga do Leblon, hoje recortada por avenidas, ruas e pra�as, cheias de suntuosos edif�cios
e ricas resid�ncias, quase se converteu em um vasto cemit�rio municipal, conforme projetou e quis,
no in�cio do s�culo, o conhecido engenheiro Andr� Rebou�as. N�o logrou seu intento, mas o que quer
que tenha suspeitado de fantasmag�rico, sobrenatural na regi�o para respaldar sua predile��o, parece
ter se materializado muito mais tarde em mais de uma oportunidade e, por raz�es � primeira vista
inexplic�veis, a maior parte dos acontecimentos sobrevindos guarda algum tipo de envolvimento com
o Hotel Leblon.
A ci�ncia simb�lica e misteriosa dos magos, as tradi��es esot�ricas dos sacerdotes e adivinhos,
as altas hip�teses dos s�bios da astronomia, o empirismo dos feiticeiros e, at�, os ritos tribais
de grupos incultos estabelecem, com o passar do tempo, senten�as quase nunca judiciosas, �s vezes
absurdas, mas que, por se confirmarem duas ou tr�s delas, terminam inculcadas como doutrina. Assim
tamb�m, como n�o � poss�vel, sempre, atinar com a motiva��o dos efeitos causados por certos epis�dios,
inclinamo-nos pela supersti��o, atribuindo-os aos fen�menos mais estranhos, quando n�o �s coisas que
estiverem pr�ximas ou que produzam impress�o peculiar, por for�a de qualquer predicado instigante.
O Hotel Leblon presta-se a esses feiti�os. Sua cr�nica est� repleta de trejeitos ocultos, sinais
misteriosos, a come�ar pela destina��o pouco usual para um estabelecimento hoteleiro da �poca,
qual seja a de dar guarida a encontros furtivos, transgredindo as normas da moral vigente, a ponto
de as fam�lias relutarem em morar na vizinhan�a. � fato not�rio que acoitava eminentes membros do
legislativo em companhia de atrizes e circulavam boatos de que o Presidente Washington Luis visitava-o
ami�de.
O extenso pr�dio amarelo que avultava no areal pertencia aos Guanesca e, nos anos cinq�enta, foi
administrado em parte pela fam�lia Otero, cujos herdeiros, os irm�os Jo�o, Jos�, Jorge e Francisco,
geriam, tamb�m, um educand�rio na G�vea e, nas horas livres de que dispunham, misturavam-se � rapaziada
local. Posteriormente, as depend�ncias do hotel serviram de sede a uma empresa dos ramos imobili�rio e
hoteleiro, at� ser o im�vel tombado pelo Inepac, face � import�ncia hist�rica e arquitet�nica da
constru��o. Atualmente, abriga uma gataria assombrada, de todos os credos e cores, s�mbolo do
funesto e inevit�vel compromisso que os fados lhe reservaram.
Nos tempos de fausto, seu bar, no amplo sal�o do t�rreo, era freq�entado principalmente pelo pessoal
do bairro (os casais de fora entravam discretamente pela garagem), e a mesa principal era capitaneada
por Amado Benigno, o Dr. Cat�o, gl�ria do futebol brasileiro e generoso mecenas, que fazia a felicidade
da garotada �vida por uma ta�a de Pepermint, dentre as que ele espalhava pela mesa, cobrindo-as com a
m�o gra�da de dedos aduncos e unhas ro�das e confessando com voz rouca:
- Quero tudo verde!
Junto � parede, no centro, funcionava uma vitrola ornada com iluminuras, atraente novidade
acionada por bot�es que correspondiam a n�meros e letras, cuja combina��o fazia tocar a m�sica
selecionada no mostru�rio.
Pelas outras mesas podiam ser vistos j�queis renomados como Rigoni e gente de pouca express�o na
vida art�stica, tentando sobressair, como a cantora Carmem Brown.
Pois, a primeira trag�dia que nos reporta � advert�ncia inicial desta hist�ria sucedeu ao j�quei
Nestor Linhares, alto para a profiss�o e dado a conquistas. O acompanhante de uma mulher que ocupava
mesa vizinha, agastado com os insistentes olhares do gal�, amea�ou-o com um rev�lver. O ginete arriou
as cal�as, mostrou a bunda e provocadoramente mandou atirar. O homem n�o vacilou, mandou bala.
Linhares teve a art�ria femoral perfurada e morreu poucos minutos depois, ainda esguichando sangue.
Nem Amado, que era m�dico, p�de fazer algo por ele. Durante muitos anos ficou no ch�o a marca
pardacenta que seguidas e minuciosas lavagens n�o conseguiram dissipar.
Meses se passaram e o H�lio Torviso, bela figura, teve o acelerador de sua motocicleta preso
quando trafegava em alta velocidade, n�o conseguiu subir a Niemeyer e bateu na parede, logo
abaixo de uma das janelas, com tamanha viol�ncia, que a cabe�a entrou no t�rax, deformando e
encolhendo o corpo e arrancando roupas e sapatos. Um bruto insens�vel, � vista do cad�ver
encurvado e do p�nis exposto, comentou:
- Caramba! Parece um bico de chaleira.
O logradouro junto ao pr�dio tamb�m foi palco de infort�nios semelhantes. Um lota��o vindo do Vidigal
perdeu a dire��o na descida da Niemeyer, despencou do barranco e caiu de ponta � beira do canal,
ocasi�o em que tr�s felizardos foram projetados pelas janelas, saindo ilesos. Os demais ocupantes
ficaram presos no interior do ve�culo, que esbarrou num cabo de alta tens�o e explodiu em chamas.
A maioria morreu nos bancos; uns poucos sa�ram qual tochas ambulantes, rolando pelo ch�o. A turma
que jogava um racha no campo do Gr�mio veio em socorro das v�timas, tentando apagar as chamas com
pis�es, areia, o que estivesse mais � m�o. Eu e Ronaldo pegamos o extintor de inc�ndio do Clube
Col�mbia, na esquina da Rua Rita Ludolf, mas o equipamento despejou a espuma em meio � correria,
tornando-se in�til. Morreram cerca de vinte passageiros. Quem n�o sucumbiu na hora, resistiu, no
m�ximo, cinco dias, dada a gravidade das queimaduras. Acompanhamos tudo pelos jornais; um ou outro,
mais solid�rio, passava diariamente pelo Hospital Miguel Couto, � cata de informa��es.
A corrida de baratinhas proporcionou pelo menos um acidente s�rio, protagonizado pelo argentino
Victorio Coppolli e sua Bugatti, no mesmo cen�rio da queda do lota��o.
Um vizinho, tipo solit�rio que se sentava junto � vitrola, nada sofreu ali, mas pode perfeitamente
ter sido alcan�ado pelos sortil�gios que emanavam do local. Era piloto de avi�es e, por causa do risco
inerente � profiss�o, evitava expressar seu afeto pelo filho pequeno, criar v�nculos mais s�lidos,
julgando, com isso, preserv�-lo de sofrimentos futuros decorrentes das calamidades que pressentia.
A esposa n�o concordava com o vatic�nio nem com a rigidez da postura preventiva e separou-se dele,
que n�o se conformava com a decis�o. Passou a beber muito e, um dia, durante exibi��o a que compareceram
familiares dos pilotos, pretextando uma acrobacia ousada, embicou a aeronave e espatifou-se
propositalmente no p�tio, diante da mulher.
Merece destaque a perda irrepar�vel de Cirandinha, o Luis Aguiar - irm�o do M�rio Pedregulho e do
Mor�vio - nosso grande amigo e parceiro de bar, goleiro do Gr�mio, rival de Carlson Gracie e Waldemar
Santana nos ringues e invenc�vel nas brigas de rua e, por tudo isso, temido e invejado; sobretudo
invejado por gente med�ocre e covarde como o policial Mariscot, que esperou o passar dos anos e um
momento de embriaguez, para espancar Cirandinha com um soco ingl�s, ainda assim, recorrendo � ajuda
de um assecla que o imobilizou sob a mira de um rev�lver. Inviabilizado o confronto direto, Luis
entrou em sua Kombi e saiu a buscar uma arma que o igualasse ao agressor. Correu demais, todavia,
e encontrou o fim num bloco de pedra que cobria o respiradouro em frente ao gin�sio de remo do
C. R. Flamengo. Seu acompanhante, o j�quei Juquinha Correia, gravemente ferido, conseguiu recuperar-se
ap�s longa interna��o, quando lhe amputaram uma perna.
Lembro-me de outras passagens tristes, como o sumi�o no mar, primeiro do filho do Alo�sio, depois
de Carlinhos Manh�es e Jo�o Carlos numa de suas idas e vindas - de prancha - �s Ilhas Cagarras,
sem falar na bala maldita que incapacitou Ruth, irm� de Rubinho. Esses casos trai�oeiros, por�m,
nada pareciam ter que os identificassem com o Hotel Leblon.
Pensando bem, n�o estou credenciado por qualquer entidade esot�rica, que me habilite a alvitrista
quim�rico, decidindo o que � obra de encantamento e que reles detalhes se regulam pelos ditames da
raz�o; nem pade�o de tal credulidade, que preconize uma divindade cega, caprichosa na distribui��o de
dons, que interfira na sina de cada um. Se formos avaliar com isen��o total de �nimos, por uma �tica
sensata, � quase certo chegarmos � conclus�o de que nenhum dos dramas descritos se deve a qualquer
press�gio ou fatalidade enredando o hotel, seu ambiente, vizinhos ou clientes. Mas, se acontecem com
eles acidentes que confirmam seus pressentimentos, ou ocorrem, por diferentes motivos, repetidas
desgra�as no mesmo local e em suas cercanias, vale perguntar que impress�o isso deixaria no esp�rito
das pessoas. N�o haveria uma certa tenta��o de acreditar?
E se causa estranheza o relato de tantas desditas ao lado das coisas boas e divertidas que inspiraram o
subt�tulo do livro, o leitor sempre poder� pular esta cr�nica; condescender com o argumento de que as
m�s lembran�as, na pior das hip�teses, servem de contraponto, ou tolerar a id�ia de que, ao vaguearmos
a fantasia pelas recorda��es do passado, enfeixamos sensa��es diversas, que terminam por n�o mais se
delimitarem, tornando-se imagem �nica, indissoci�vel, assim reconhecida pela saudade. A imaginativa do
leitor certamente aperfei�oar� o que sair sombreado e confuso no desenho do autor. O que n�o me parece
justo � exigir que eu ignore casos que me pareceram t�o significativos e, muito menos, personagens que
me foram t�o caras e sedutoras. Calhou, infelizmente, de surpreend�-las num momento ruim.
Texto extra�do do livro "O ANTIGO LEBLON - Uma Aldeia Encantada - Cr�nicas" - Rio de Janeiro
Foto Augusto
Malta - 18/08/1934
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