Hist�ria ver�dica de um torcedor

Jorge Lasperg

- V�, o que � ser Flamengo ?

Naquela tarde de outono carioca, um domingo qualquer de 1964, o velho Silva, rubro-negro de quatro costados, olhou-me por cima dos �culos bifocais, sorriso enigm�tico no canto da boca. Interrompeu por um instante a partida de paci�ncia que jogava na velha mesa de f�rmica do varand�o, e levantou-se com a calma e a decis�o de quem vai fazer algo muito importante.

Sou o terceiro de seus nove netos, e o primeiro neto homem, talvez da� sua predile��o por mim que ele n�o fazia muita quest�o de esconder. Venho de uma fam�lia de vasca�nos n�o-ortodoxos, torcedores de pouco sofrimento nas derrotas e alegria serena nas vit�rias, prefer�ncia s� denunciada pelo escudo do Vasco pendurado numa parede acanhada. Como flamenguista roxo, meu av� teve que amargar o desgosto de ver dois de seus quatro filhos simpatizando com o arqui-rival, entre eles a filha predileta, minha m�e. Aquilo j� tinha sido duro demais para ele. Pelo menos o neto havia de herdar sua paix�o de torcedor.

"Vem comigo, vou te mostrar uma coisa", disse-me ele, levando-me pela m�o at� o seu quarto. Do fundo de seu guarda-roupa Schippendale, puxou uma velha caixa met�lica de biscoitos champanhe, amarrada com barbante de sisal. Desatou pacientemente aquele n�. De dentro dela, tirou uma sacola de pano cheirando a naftalina com uma faixa de tri-campe�o carioca, com uma escrita � caneta com os dizeres "Ao amigo Silva, uma lembran�a de um rubro-negro", um garrancho ileg�vel autografando, e um �lbum com recortes de jornais antigos.

"Olha s� isso aqui, foi pouco antes de voc� nascer", falava ele num tom de quem compartilha um segredo de estado. Eram recortes de jornais esportivos de Maio de 1956, meio amarelados, cuidadosamente dobrados e organizados em uma ordem que s� ele entendia. Ali estava documentada a epop�ia do segundo tri-campeonato do Flamengo. Enquanto mostrava aqueles recortes, o velho Silva vestiu o neto com aquela faixa de campe�o e contava, com uma narrativa que beirava o �pico, todos os detalhes daquela conquista inesquec�vel. A decis�o contra o Am�rica, ent�o um tima�o, numa melhor de tr�s. A vit�ria apertada na primeira partida, um a zero, gol de Evaristo. A derrota acachapante na segunda partida, cinco a um para eles, a atua��o soberba de Alarc�n, meia-esquerda paraguaio, maestro do time do Am�rica. A terceira partida, a negra, a final. A entrada do Dida no time, pequenino e magricela. Maracan� lotado. O jogo. A trucul�ncia dos beques Tomires e Pav�o, tirando Alarc�n de campo. A voz do velho se avolumava, olhar brilhando de paix�o, fixo em um passado mais que presente, eu inebriado com aquela narrativa, podia ouvir a torcida rugindo nas arquibancadas. A fibra de Dequinha, mameluco digno, centeralfe valente, lutador que n�o se entrega nunca, a cara do Flamengo, a vida pelo Flamengo. Os dribles irresist�veis de Joel, ponta-direita habilidoso, parte do brilho ofuscado por ser contempor�neo de Man� Garrincha. A categoria de Rubens, meia-direita elegante, reverenciado como "Doutor" por toda a cr�nica esportiva da �poca. A aplica��o e disciplina do "formiguinha" Zagallo. O amor de todos os jogadores �quela camisa, que o velho chamava de "Manto Sagrado". A vit�ria expressiva por quatro a um, o Mengo � tri-campe�o, obrigado, meu S�o Jorge. O desfile em carro aberto dos her�is do povo carioca, ainda com o uniforme suado da vit�ria. O desvio do trajeto do comboio, j� de noite, pelas ruas de Botafogo. Os jogadores pulando o muro do Cemit�rio S�o Jo�o Batista. A faixa de tri-campe�o depositada sobre o t�mulo do presidente Gilberto Cardoso, morto dias antes ao final de uma partida de basquete, cora��o tra�do pela emo��o de ver seu amado Flamengo vitorioso com uma cesta no �ltimo segundo. E, sobretudo, Dida. Edivaldo Alves de Santa Rosa, o Dida. Ponta-de-lan�a arisco, lan�ado na fogueira de uma decis�o de tri-campeonato pelo treinador Fleitas Solich, bruxo paraguaio, milongueiro como ele s�, como um �s tirado da manga. A foto no velho jornal falava por si. Dida, alagoano da cabe�a chata, topetinho da moda, bigodinho fino, autor de tr�s dos quatro gols, correndo de bra�os abertos, uma express�o de alegria incontida que eu nunca tinha visto em toda a minha vida. Ouvi aquilo tudo encantado, os olhos quase sem piscar, brilhando com essa est�ria de amor incondicional a uma entidade, amor mais sincero do mundo. O velho Silva delirava, quase n�o cabia em si de tanta satisfa��o. Fiquei t�o envolvido com essa est�ria que nem notei o sinal aberto na sa�da do metr� Flamengo quando atravessava a rua. O motorista de t�xi, escudo do Am�rica no p�ra-brisa, tirou um fino da minha bunda e ainda gritou um palavr�o. Volta aqui que eu te acerto, ot�rio. Estou em Abril de 1998 e nem percebi como o tempo passou depressa.

Com fome e cansado de procurar apartamento para morar, resolvi relaxar um pouco tomando um chope e comendo um bolinho de bacalhau no Picote, botequim tradicional daquela regi�o e conhecido reduto de rubro-negros. O chope garoto ia durar o tempo que um outro freq�entador qualquer levaria para beber um chope igual ao meu, decidi. Escolhi aquele senhor magrinho debru�ado no balc�o do fundo, pinta de nordestino, sunga de praia, areia salpicada nas pernas finas e no peito de pombo, chope garoto � sua frente, colarinho digno no copo, uma sardinha meio comida no pratinho branco, o guardanapo de papel vagabundo, engordurado e coberto de farelos de fritura. Comia e bebia com a silenciosa majestade de quem um dia foi rei de uma na��o gloriosa. A express�o de seu rosto marcado era uma mistura de nostalgia e nobreza, pr�pria dos grandes guerreiros do passado. Eu conhecia aquele rosto. � ele, tenho quase certeza. Fui em sua dire��o : "Eu n�o sei se o senhor � quem eu estou pensando, mas se o senhor for, me deve um aut�grafo com dedicat�ria, porque eu sou Flamengo por sua causa". O homem virou o rosto lentamente em minha dire��o, olhar intrigado, como que tentando entender alguma coisa. Sil�ncio absoluto no bar, quebrado pelo portugu�s dono do botequim, que gritava com a indigna��o de quem, como eu, queria ver uma injusti�a reparada : "� ele mesmo ! E ningu�m hoje em dia se lembra mais dele ! � ele mesmo ! � o Dida do Flamengo ! � o Dida do Flamengo !". Vi a express�o do velho craque se modificar. Ele abriu os bra�os e me abra�ou como quem abra�a a um amigo que n�o v� h� muito tempo, aquela mesma express�o de alegria incontida que eu tinha visto naquele recorte de jornal de mais de quarenta anos atr�s. Aplausos. Sorrisos. Parecia uma festa, o resgate de um �dolo rubro-negro, o Dida, segundo maior artilheiro da hist�ria do Flamengo, �dolo at� mesmo de Zico, primeiro artilheiro, o maior de todos os �dolos rubro-negros.

Conversamos horas a fio sobre momentos capitais daquele jogo. Cada lance, cada gol � revisitado nessa viagem de recorda��es. Revive a emo��o de ouvir Solich dizer, na v�spera da decis�o, "tu v�s a jugar ma�ana". O pacto pela vit�ria, ainda no vesti�rio. Ele jura que o lance do Tomires em cima do Alarc�n foi acidental. Lembra de um chap�u aplicado no centeralfe do Am�rica, ainda zero a zero. Cantarolamos juntos aquele sambinha antigo, que meu av� me ensinou : "Flamengo joga amanh�, eu vou pra l� / vai haver mais um baile / no Maracan� / O Mais Querido / tem Dida, Dequinha e Pav�o / eu j� rezei pra S�o Jorge / pro Mengo ser campe�o". E a mais emocionante de todas as suas lembran�as : o carinho dele, her�i daquele jogo, para com aquele senhor baixinho, �culos bifocais, av� de duas netas, prestes a ganhar um neto homem, que driblou a seguran�a e entrou no vesti�rio da vit�ria, enrolado na bandeira vermelho e preta, euf�rico pela conquista, olhos marejados de tanta emo��o, rouco de tanto gritar, s� para agradecer-lhe pelos gols e pela vit�ria, autografando-lhe a faixa ao peito e dando-lhe um sincero abra�o.

J� era noite alta quando nos despedimos, com um abra�o demorado e agradecimentos m�tuos. Sa� andando, leve como quem acabou de lavar a alma, assoviando o hino do Flamengo, justificado e feliz da vida. J� ia longe, quando uma voz me chamou, meio esbaforida. Parei e olhei para tr�s. O velho Dida, com uma corrida bastante l�pida para quem j� beirava os setenta anos, aproximou-se e, ainda ofegante, entregou-me um papel. "Isso � para voc�. Agora n�o te devo mais nada", disse ele, com um sorriso maroto. Era um peda�o de papel de embrulho, tornado guardanapo depois de cortado � faca pelo portugu�s dono do botequim.

 

Nesse pequeno peda�o de papel, que eu guardo com carinho at� hoje, estava escrito � m�o : "Ao amigo Jorge, uma lembran�a de um rubro-negro", o mesmo garrancho autografando, agora perfeitamente leg�vel : "Edivaldo Alves de Santa Rosa - DIDA".

 Jorge Lasperg � flamenguista e Analista de Sistemas

Para ouvir o Hino do Flamengo clique aqui:

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18-ago-2008