Vamos beber no passado para esquecer o presente

Arnaldo Jabor

N�o ag�ento mais. Volto para o Antonio's. Voc�s me perguntar�o: 'O que � isso?' Bem, o Antonio�s era o bar essencial situado no espa�o-tempo entre Ipanema e Leblon. O velho Antonio's fechou, mas continua aberto, flutuando dentro de minha cabe�a. 'Ahh... isso � nostalgia sua...' � dir�o os jovens se dissipando em raves � 'era um bar como qualquer outro...'

N�o; n�o era. Havia alguma coisa rara naquele pequeno espa�o decorado � inglesa, com u�sques bons, ancorado numa esquina da hist�ria brasileira.

O Antonio's nasceu e morreu mais ou menos durante a ditadura e viveu cercado de repress�o por todos os lados. Parecia uma embaixada onde nos exil�vamos toda noite. Uns foram para a embaixada do Chile, outros para a Arg�lia; eu ia para o Antonio�s.

Por acaso, agora sa�ram dois livros de fotos extraordin�rias sobre o Brasil. Um, do grande fot�grafo Orlando Brito, sobre os �ltimos 40 anos de nossa pol�tica louca; e o outro, um maravilhoso �lbum do refinad�ssimo Paulo Garcez, 'A arte do encontro', sobre as figuras de minha gera��o em Ipanema.

Com os dois eu pirei. Com o livro do Brito, revi o inferno que temos passado na pol�tica e, com o do Garcez, o para�so privado que vivemos em Ipanema. E como n�o ag�ento mais ver esse mundo de expectativas e suspenses, tr�ficos e seq�estros, neste Rio destru�do por incompetentes e ladr�es, resolvo viajar no tempo e volto ao Antonio's, mergulhando por entre as p�ginas de Garcez.

A porta se abre e vejo l� dentro meus amigos todos, um bando de malucos jovens misturados com velhos geniais. Entre os doidos como eu, Ruy Solberg, Cac� Diegues, Glauber, estavam homens como Di Cavalcanti, Sergio Buarque de Holanda, Rubem Braga, Vinicius, Tom, Lucio Rangel, Millor, tantos... O Antonio�s est� em grande noite... O chefe Zelito me recebe, em seu eterno palet� azul, junto com o vice-ma�tre Serafim, que parecia mesmo um anjinho, gordo e pequenino, que ali�s j� est� no c�u... Chego ao balc�o do Milton, o barman, e fa�o a piada costumeira: 'Milton... tem leite desnatado? N�o? Ahh... ent�o me d� um u�sque mesmo...'

A meu lado, est� o cineasta Miguelzinho Faria, meio na fossa. Naquela �poca, ficar 'na fossa', deprimido, era chique; hoje, n�o � mais comercial � temos de ostentar um sorriso, sem o qual nada valemos. Pergunto ao Miguelzinho intemporal: 'Por que o Antonio's foi o bar perfeito?' E ele: 'O Antonio's era um bar com 'projeto', porque t�nhamos uma utopia revolucion�ria. O Antonio's era o 'aparelho' da esquerda festiva; tudo tinha um lev�ssimo sabor pol�tico. Em plena repress�o, nos ach�vamos donos do mundo. Nossa 'revolu��o' era poesia pura. N�o visava uma tomada do poder pol�tico, coisa chata; era uma tomada da vida, para mudar tudo. Como dizia Rimbaud: 'Il faut changer la vie''... Dito isso, Miguelzinho Faria re-mergulhou no copo de u�sque.

A meu lado, materializa-se o Roniquito, reformador de costumes, de porre, e agrega: 'N�o � nada disso; o Antonio's era a del�cia da ilus�o. Viv�amos na plena bosta da ditadura mas o Antonio's ainda era um bar modernista, na fronteira da p�s-modernidade....' (Reparo que transparentes asas saem de suas costas). Ent�o, Roniquito vira-se para um escritor ao lado e dispara: 'Voc� j� ouviu falar de William Faulkner?' O outro: 'Claro'. E ele: 'Ent�o voc� � um babaca mesmo...'

De repente, explode uma briga no fundo. Quase aos tapas, Rubem Braga e Di Cavalcanti discutem. Rubem entendia de pintura e, tamb�m de porre, sacaneava as mulatas de Di. 'Voc� comeu aquela gorda?' E Di: 'Vai pra p... q... p..., seu cronistinha de merda!' Dali a pouco, os dois se uniam pra esculhambar um paulista arrivista que se meteu na briga.

Olho o Antonio�s em meu del�rio. Todos parecem boiar no espa�o-tempo. Como ficou remoto o tempo presente: Ciro, Serra, Lula, Elias Maluco, Esp�rito Santo, 'risco Brasil', tudo t�o longe... Milton me d� um u�sque, com sua m�o iluminada, seu p�lido sorriso. Tom Jobim me murmura ao lado: 'Pede Old Parr � parece ouro l�quido...'. Vinicius concorda, virando o copo.

De repente, come�am a entrar as mulheres... Meu Deus, como eram belas! Noelza, Regina Rosemburgo, Tania Caldas, Duda Cavalcanti, Danuza. At� a Candice Bergen, a grande conquista do macho brasileiro, Tarso de Castro mordendo-lhe a orelha, sem falar ingl�s... Elas eram mais mit�logicas que as mulheres de hoje. Nada de bund�es e silicone. Essas musas estavam na transi��o tamb�m entre o ontem e o hoje; eram precursoras, her�icas, matadoras de idiotas machistas, abrindo o caminho para as Luanas Piovanis virtuais, que nem sabem que sua liberdade foi conquistada h� trinta anos pelas guerreiras do desbunde. S�bito, me toco: foram elas que abriram as portas! Ipanema foi uma revolu��o feminina. Sim! Por elas, veio a delicadeza, a arte, o prazer. Hoje, estamos sob o signo de machos canalhas e imbecis dominando a vida urbana. Faz-se um clar�o na porta e entra Leila Diniz sentenciando: 'Porra, p#$&*m^&%#!... Aproveita minha gente, que essa sopa vai acabar!'.

Pouco depois, ela morreu no avi�o que caiu num deserto da �ndia e eu senti que era um pren�ncio do grande bode que viria, mesmo na p�s-ditadura. Hoje entendo o calafrio: acho que a democracia chegou tarde, entre n�s; o estrago j� estava feito.

Saio do Antonio�s por entre as p�ginas do livro de Paulo Garcez e olho o c�u l� fora. Est� povoado de enormes estrelas rodantes, como aquelas do Van Gogh no c�u daquele barzinho iluminado de Arles...

Passa um cambur�o de sirene aberta e volto assustado ao presente. Entro no meu carro, com medo de ladr�o, e paro no sinal. Um menino miser�vel faz malabarismo com tr�s bolinhas na minha frente. Caio em prantos, sem o Milton para me dar um u�sque.

Publicado no Jornal O GLOBO - 16 de julho de 2002