O amor acaba

Paulo Mendes Campos

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e sil�ncio; acaba em caf�s engordurados, diferentes dos parques de ouro onde come�ou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um autom�vel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada � alegria p�stuma, que n�o veio; e acaba o amor no desenlace das m�os no cinema, como tent�culos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solid�o; como se as m�os soubessem antes que o amor tinha acabado; na ins�nia dos bra�os luminosos do rel�gio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alum�nio e espelhos mon�tonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pens�o; �s vezes acaba o amor nos bra�os torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irm� dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretens�o rid�cula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua �s prov�ncias empoeiradas da �sia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compuls�o da simplicidade simplesmente; no s�bado, depois de tr�s goles mornos de gim � beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, �s vezes vingado por alguns dias, mas que n�o floresceu, abrindo par�grafos de �dio inexplic�vel entre o p�len e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde h� mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crep�sculos, caindo impercept�vel no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do t�dio para o t�dio, na barca, no trem, no �nibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eri�a e acaba; no inferno o amor n�o come�a; na usura o amor se dissolve; em Bras�lia o amor pode virar p�; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em S�o Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; �s vezes acaba na mesma m�sica que come�ou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no cora��o que se dilata e quebra, e o m�dico sentencia imprest�vel para o amor; e acaba no longo p�riplo, tocando em todos os portos, at� se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; �s vezes n�o acaba e � simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem raz�o at� que algu�m, humilde, o carregue consigo; �s vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com do�ura e esperan�a; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o �lcool; de manh�, de tarde, de noite; na flora��o excessiva da primavera; no abuso do ver�o; na disson�ncia do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recome�ar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.


Agradecemos a J.Carino pelo envio da cr�nica.

(O amor acaba: cr�nicas l�ricas e existenciais. 2a ed., Rio de Janeiro: Civiliza��o Brasileira, 2000, p. 21-22).