CARIOCA

Fernando Sabino

CARIOCA, como se sabe, � um estado de esp�rito: o de algu�m que, tendo nascido em qualquer parte do Brasil (ou do mundo) mora no Rio de Janeiro e enche de vida as ruas da cidade.

A come�ar pelos que fazem a melhor parte sua popula��o, a gente do povo: porteiros, gar�ons, cabineiros, oper�rios, mensageiros, sambistas, favelados. Ou simplesmente os que as not�cias de jornal chamam populares: esses que se det�m horas e horas na rua, como se n�o tivessem mais o que fazer, apreciando um incidente qualquer, um camel� exibindo no ch�o a sua mercadoria, um propagandista fazendo m�gicas. A improvisa��o � o seu forte, e irresist�vel a inclina��o para fazer o que bem entende, na convic��o de que no fim da certo � se n�o deu � porque n�o chegou ao fim.

E contrariando todas as leis da ci�ncia e as previs�es hist�ricas, acaba dando certo mesmo porque, como afirma ele, Deus � brasileiro � e sendo assim, muito possivelmente carioca.

Pois tamb�m sou filho de Deus � ele n�o se cansa de repetir, reivindicando um direito qualquer. Que pode ser pura e simplesmente o de dar um jeitinho, descobrir um 'macete', arranjar lugar para mais um.

Toda rela��o come�a por ser pessoal, e nos melhores termos de camaradagem. Para conseguir alguma coisa em algum lugar conhece sempre algu�m que trabalha l�: procure o Juca no primeiro andar, ou o Non�, no Gabinete, diga que fui eu que mandei. At� os porteiros, serventes ou ascensoristas t�m prestigio e servem de acesso aos figur�es. Todo mundo � 'meu chapa', 'velhinho', 'nossa amizade'. Todos se tratam pelo nome de batismo a partir do primeiro encontro. E se tornam amigos de inf�ncia a partir do segundo, com tapas nas costas e abra�os efusivos em plena rua, para celebrar este extraordin�rio acontecimento que � o de se terem encontrado.

A maioria dos encontros � casual, e em geral em plena rua � pois ningu�m resiste �s ruas do Rio: a gente se v� por ai, quando puder eu apare�o. Os compromissos de hora marcada s�o mera formalidade de boa educa��o, da boca para fora. Mesmo estabelecido, de pedra e cal, h� uma sutileza qualquer na conversa, que escapa aos ouvidos incautos do estrangeiro, indicando se s�o ou n�o para valer. Na linguagem do carioca, 'pois n�o' quer dizer 'sim', 'pois sim' quer dizer 'n�o'; 'com certeza', 'certamente', 'sem d�vida' s�o afirma��es categ�ricas que em geral significam apenas uma possibilidade.

Encontrando-se ou se desencontrando, como se mexem! As ruas do Rio, mesmo em dias comuns, vivem cheias como em festejos cont�nuos. Todos andam de um lado para outro, a passeio, sem parecer que estejam indo especialmente a lugar nenhum. As esquinas, as portas dos botequins e casas de com�rcio, os shopping-centers cada vez mais numerosos, todos os lugares, mesmo de simples passagem, s�o obstru�dos por aglomera��es de pessoas a conversar em grande anima��o.

E como conversam! Falam, gesticulam, cutucam-se mutuamente, contam anedotas, riem, calam-se para ver passar uma bela mulher, dirigem-lhe galanteios am�veis, voltam a conversar. Ningu�m parece estar ouvindo ningu�m, todos falam ao mesmo tempo, numa seq��ncia de gargalhadas. Em meio � conversa, um se despede em largos gestos e se atira no �nibus que se det�m para ele fora do ponto, a caminho da Zona Sul.

Copacabana, Arpoador, Ipanema, Leblon � praias cheias de cariocas, como se todos os dias da semana fossem domingos ou feriados. Espalhados na areia, ou andando no cal�ad�o, se misturam jovens e velhos de cal��o, mulheres em sum�rias roupas de banho, gente bonita ou feia, alta ou baixa, magra ou gorda, na mais surpreendente exibi��o de naturalidade em rela��o ao pr�prio corpo de que � capaz o ser humano.

Do Leblon em diante, conv�m por hoje n�o se aventurar: S�o Conrado, Barra, Jacarepagu�, Floresta da Tijuca � o dia n�o ter� mais fim. Em vez disso, se o visitante, depois de se deslumbrar com a Lagoa Rodrigo de Freitas, dobrar uma esquina do Jardim Bot�nico, Botafogo ou Flamengo, de repente se ver� numa rua sossegada, ladeira acima, com casar�es antigos cobertos de azulejos que o atiram aos tempos coloniais. Laranjeiras, Cosme Velho � uma viela tortuosa o conduz a um rec�ndito Largo do Botic�rio, de singela beleza arquitet�nica, que faz lembrar Floren�a.

Se o visitante subir esta outra rua, logo se ver� cercado de verde por todos os lados, � sombra de frondosas �rvores onde cantam passarinhos e esvoa�am borboletas � podendo at� mesmo surpreender num galho as macaquices de um sag�i.

E do alto do morro, ver� a paisagem abrir-se a seus p�s, exibindo l� embaixo a cidade inteira, do Corcovado ao P�o de A��car, entre montanhas e o mar. Depois de admir�-la, sentir� vontade de integrar-se a ela, regressar ao bul�cio das ruas e ao excitante conv�vio dos cariocas.

A partir deste instante estar� correndo s�rio risco de ficar no Rio para sempre e se tomar carioca tamb�m.

Fernando Sabino, 'Livro aberto', Editora Record � Rio de Janeiro, 2001.

Copacabana

Copacabana - Foto de Paulo Teixeira