CARIOCA, como se sabe, � um estado
de esp�rito: o de algu�m que, tendo nascido em qualquer parte do Brasil (ou do
mundo) mora no Rio de Janeiro e enche de vida as ruas da cidade.
A come�ar
pelos que fazem a melhor parte sua popula��o, a gente do povo: porteiros,
gar�ons, cabineiros, oper�rios, mensageiros, sambistas, favelados. Ou
simplesmente os que as not�cias de jornal chamam populares: esses que se det�m horas e horas na rua, como se
n�o tivessem mais o que fazer, apreciando um incidente qualquer, um camel�
exibindo no ch�o a sua mercadoria, um propagandista fazendo m�gicas. A
improvisa��o � o seu forte, e irresist�vel a inclina��o para fazer o que bem
entende, na convic��o de que no fim da certo � se n�o deu � porque n�o chegou ao
fim.
E contrariando todas as leis da ci�ncia e as previs�es hist�ricas, acaba dando
certo mesmo porque, como afirma ele, Deus � brasileiro � e sendo assim, muito
possivelmente carioca.
Pois tamb�m sou filho de Deus � ele n�o se cansa de repetir, reivindicando um direito
qualquer. Que pode ser pura e simplesmente o de dar um jeitinho, descobrir um
'macete', arranjar lugar para mais um.
Toda rela��o come�a por ser pessoal, e nos melhores termos de camaradagem. Para
conseguir alguma coisa em algum lugar conhece sempre algu�m que trabalha l�:
procure o Juca no primeiro andar, ou o Non�, no Gabinete, diga que fui eu que mandei. At� os
porteiros, serventes ou ascensoristas t�m prestigio e servem de acesso aos
figur�es. Todo mundo � 'meu chapa', 'velhinho', 'nossa amizade'. Todos se tratam
pelo nome de batismo a partir do primeiro encontro. E se tornam amigos de
inf�ncia a partir do segundo, com tapas nas costas e abra�os efusivos em plena
rua, para celebrar este extraordin�rio acontecimento que � o de se terem
encontrado.
A maioria dos encontros � casual, e em geral em plena rua � pois ningu�m resiste �s ruas
do Rio: a gente se v� por ai, quando puder eu apare�o. Os compromissos de hora
marcada s�o mera formalidade de boa educa��o, da boca para fora. Mesmo
estabelecido, de pedra e cal, h� uma sutileza qualquer
na conversa, que escapa aos ouvidos incautos do estrangeiro, indicando se s�o ou n�o para valer. Na
linguagem do carioca, 'pois n�o' quer dizer 'sim', 'pois sim' quer dizer
'n�o'; 'com certeza', 'certamente', 'sem d�vida' s�o
afirma��es categ�ricas que em geral significam apenas uma
possibilidade.
Encontrando-se ou se desencontrando, como se mexem! As ruas do Rio, mesmo em dias comuns, vivem
cheias como em festejos cont�nuos. Todos andam de um lado para outro, a passeio,
sem parecer que estejam indo especialmente a lugar nenhum. As esquinas, as
portas dos botequins e casas de com�rcio, os shopping-centers cada vez mais numerosos, todos os
lugares, mesmo de simples passagem, s�o obstru�dos por aglomera��es de pessoas a
conversar em grande anima��o.
E como conversam! Falam, gesticulam, cutucam-se mutuamente, contam anedotas, riem,
calam-se para ver passar uma bela mulher, dirigem-lhe galanteios am�veis, voltam
a conversar. Ningu�m parece estar ouvindo ningu�m, todos falam ao mesmo tempo,
numa seq��ncia de gargalhadas. Em meio � conversa, um se despede em largos
gestos e se atira no �nibus que se det�m para ele fora do ponto, a caminho da
Zona Sul.
Copacabana, Arpoador, Ipanema, Leblon � praias cheias de cariocas, como se todos os dias da
semana fossem domingos ou feriados. Espalhados na areia, ou andando no cal�ad�o,
se misturam jovens e velhos de cal��o, mulheres em sum�rias roupas de banho,
gente bonita ou feia, alta ou baixa, magra ou gorda, na mais
surpreendente exibi��o de naturalidade em rela��o ao pr�prio corpo de que
� capaz o ser humano.
Do Leblon
em diante, conv�m por hoje n�o se aventurar: S�o Conrado, Barra, Jacarepagu�,
Floresta da Tijuca � o dia n�o ter� mais fim. Em vez disso, se o visitante,
depois de se deslumbrar com a Lagoa Rodrigo de Freitas, dobrar uma esquina do
Jardim Bot�nico, Botafogo ou Flamengo, de repente se ver� numa rua sossegada,
ladeira acima, com casar�es antigos cobertos de azulejos que o atiram aos tempos
coloniais. Laranjeiras, Cosme Velho � uma viela tortuosa o conduz a um rec�ndito
Largo do Botic�rio, de singela beleza arquitet�nica, que faz lembrar
Floren�a.
Se o visitante subir esta outra rua, logo se ver� cercado de verde por todos os
lados, � sombra
de frondosas �rvores onde cantam passarinhos e esvoa�am borboletas � podendo at�
mesmo surpreender num galho as macaquices de um
sag�i.
E do alto do morro, ver� a paisagem abrir-se a seus p�s, exibindo l� embaixo a cidade
inteira, do Corcovado ao P�o de A��car, entre montanhas e o mar. Depois de
admir�-la, sentir� vontade de integrar-se a ela, regressar ao bul�cio das ruas e
ao excitante conv�vio dos cariocas.
A partir deste instante estar� correndo s�rio risco de ficar no Rio para sempre e se
tomar carioca tamb�m.
Fernando Sabino, 'Livro aberto', Editora Record � Rio de Janeiro, 2001.
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