Foto de Paulo A. Teixeira
Longe de mim aceitar a velha tese de que o Brasil � um pa�s onde os conflitos sociais s�o resolvidos em paz, na base do jeitinho e assim por diante. Nossa Hist�ria, de Canudos ao Contestado, est� a� mesmo e n�o me deixa mentir. Ao mesmo tempo, � �bvio que nos comportamos � n�s, a chamada classe m�dia � como uma carneirada sem rival. Resignamo-nos a tudo, at� mesmo a sermos governados de maneira condescendente e, ao mesmo tempo, autorit�ria, entre mentiras, fraudes, hipocrisia e falsas alega��es. Fico assim achando que, no fundo, estamos � satisfeitos com o que ocorre em nosso destino coletivo. Acostumamo-nos, por exemplo, � viol�ncia urbana e at� aceitamos a tese de que ela tem exclusivamente ra�zes econ�micas. N�o � inteiramente correto. Tem ra�zes econ�micas, certo, mas tamb�m tem ra�zes culturais muito fortes, eis que, se pobreza e mis�ria gerassem necessariamente criminalidade, a �ndia e Bangladesh, para ficar somente em dois exemplos, seriam matadouros humanos, onde se assaltariam at� templos religiosos, como j� aconteceu aqui no Brasil � e vive acontecendo, com os geralmente chiques ladr�es de imagens enriquecendo suas cole��es � custa da pilhagem de igrejas.
Mantemos uma natural subservi�ncia � autoridade, a ponto de ficarmos chocad�ssimos quando algu�m se dirige a um governante, qualquer que seja o n�vel dele, de forma democr�tica e livre, como devia ser num regime onde, afinal, pelo menos na letra da lei, todo o poder emana do povo e em seu nome ser� exercido. A autoridade precisa ser respeitada, � evidente, mas n�o na medida em que se avilte o cidad�o. A autoridade, num estado de direito, � leg�tima porque fundada na vontade popular. Mas, entre n�s, n�o. N�s nos comportamos muito mais como os s�ditos de um suserano medieval do que como cidad�os leg�timos e detentores, conjuntamente, da soberania popular. Quando, faz algum tempo, publiquei aqui uma carta ao presidente da Rep�blica, carta esta em que tive extremo cuidado para n�o desrespeitar a institui��o e n�o bater abaixo da cintura, as pouqu�ssimas pessoas, entre literalmente milhares, que ficaram contra reprovavam o �desrespeito� ao presidente. Que desrespeito? Dizer, como cidad�o livre e por acaso autor de uma coluna semanal, o que penso, dentro dos limites da civilidade, � algum desrespeito?
Claro que n�o cometi nenhum desrespeito, apenas exerci um direito que n�o me foi concedido nem pelo presidente, nem por ningu�m. Tanto eu como voc�s temos direito � livre manifesta��o de opini�o e � livre consci�ncia. Chegaram at� a dizer que eu invejava o presidente, como se eu me ressentisse do fato de, como ele, n�o sair me pavoneando pelo mundo afora, comentando seu pa�s como se fosse um observador estrangeiro. Tenho in�meras outras invejas, mas estas s�o benignas e fundadas na admira��o que alimento, por exemplo, em rela��o a Shakespeare ou Rabelais. Quem acha que eu teria inveja do presidente est� me entendendo pelo avesso, n�o tenho inveja nenhuma dele, a id�ia chega a me parecer c�mica. Tenho � pena do papel que ele desempenha na Hist�ria de nosso pa�s e que um dia vai ser visto na perspectiva adequada, at� por quem confunde respeito com subservi�ncia.
Agora, sem nos revoltarmos ou nos escandalizarmos, vemos um partido integrante do governo revoltar-se porque o marido da doutora est� sendo investigado pela Pol�cia Federal. Por qu�? N�o pode? N�o se faz? Que � isso, onde estamos? Quer dizer que investigar den�ncias e pistas contra algu�m ligado ao poder � uma grave ofensa? Qualquer pessoa com mais de 200 gramas de c�rebro h� de concordar que quem n�o deve n�o teme e, mais ainda, que, se tudo fosse regular, a primeira provid�ncia dos amea�ados, da dra. Roseane a seu felizardo consorte, seria exigir que as investiga��es fossem ao fundo, para provar a alegada inoc�ncia sobre as alegadas culpas. E o governo, como se reconhecesse que aqui as coisas funcionam assim mesmo, n�o tem a coragem de dizer isso. Ou seja, mostra que, para os enquistados no poder, existe de fato uma realidade pol�tica e sociol�gica (desculpem a m� palavra) onde o povo n�o pode, nem deve, interferir. Voltando ao que disse acima, isso n�o se faz, n�o est� direito, direito � sustentar privil�gios e prerrogativas inerentes ao exerc�cio do poder. N�o temos governantes, afinal; temos patr�es, � segundo essa �tica que nos pautamos.
Hoje, escandalosamente para quem saia um pouco do rebanho de carneiros que constitu�mos, os habitantes de grandes cidades do pa�s convivem com a imoral epidemia de uma doen�a que poderia h� muito estar sob controle e pela qual v�rios amigos meus foram atacados, alguns deles gravemente. Ningu�m acha nada demais sair comprando velas especiais, ingerindo quilos de complexo B, besuntando-se de repelentes de insetos, tomando ch� de folha de cravo-de-defunto e assim por diante. J� existem at� pr�speros neg�cios vicejando por causa do dengue, pois que, como sabemos, o que d� para rir d� para chorar, nunca falha. E onde ficam as irresponsabilidades testemunhadas, onde fica a nossa dignidade? Onde ficam os impostos por via dos quais nos depenam, de tudo quanto � jeito imagin�vel? Ficam num coment�rio de boteco ou outro, num solit�rio artigo de jornal ou outro. Continuamos a viver em p�nico meio sublimado e rezando para que um mosquito infectado n�o nos pique, ou n�o pique fam�lia e amigos.
�, carneirada somos, carneirada morreremos. N�o �desrespeitaremos� a autoridade que nos desrespeita, n�o reagiremos contra nada. At� porque nos falta at� mesmo o sentimento de rebanho. Triste verdade, mas a realidade � que, enquanto os problemas n�o nos atingem diretamente, damos pouca import�ncia a eles, os outros que se virem. Quer dizer, pensando bem, n�o temos um comportamento t�o ovino assim. Estamos um degrau abaixo, pensando bem mesmo. E, portanto, merecemos nosso destino, n�o h� de que nos queixarmos. Podemos dar um �b� humilde, de vez em quando. Imagino que isto � suficiente para muitas pessoas.
Publicado no jornal O GLOBO em 10/03/2002
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