NUVENS DO PROFETA GENTILEZA

Miguel Falabella

Eu vinha dirigindo pela enseada de Botafogo, o dia tinha nascido sobre o desfile da Beija-Flor e a manh� soprou uma brisa fresca, antes de o Sol inundar tudo. Mas l� vinha eu, cansado, de janela aberta, sorvendo o ar da minha cidade, feliz da vida, quando apertei a tecla errada no aparelho de som e, ao inv�s de entrar o samba da Grande Rio, Ella Fitzgerald surgiu cantando Cole Porter, com aquela do�ura e categoria de sempre. Imediatamente, o mundo mudou l� fora, minha cabe�a deu uma guinada violenta e o olhar foi redirecionado. Ela mal come�ou a cantar e o olhar foi redirecionado. M�sica faz isso com a gente, �s vezes.

M�sica nos atira para o ar de repente, sem aviso. � isso. Rouba o ch�o e estende um tapete de nuvens no lugar. Ella Fitzgerald fez isso, esta manh�, quando eu dirigia pela enseada de Botafogo, achando linda a minha cidade, imaginando o que ser� dela num futuro que eu n�o verei. Um futuro distante, quando arque�logos importantes recuperar�o parte dos grandes blocos de concreto com as inscri��es do profeta Gentileza, aquelas mesmas que me acostumei a ler e reler nas idas e vindas da Ilha. A beleza gr�fica das letras e a composi��o de suas profecias, de suas palavras de amor. E simplesmente apagaram tudo. N�o tiveram sequer o bom senso de perguntar a n�s, moradores da cidade, para quem as palavras eram dirigidas. Junto com as palavras de Gentileza, afogados na tinta do poder, v�o-se peda�os das minhas viagens e dos meus sonhos, sacolejando nos �nibus, o olhar perdido na feia paisagem da Avenida Brasil, os olhos adolescentes projetando seus sonhos no comprido muro do cemit�rio do Caju. Tudo apagado. Por um tempo, talvez. Quem sabe, por esses misteriosos descaminhos, aquelas n�o sejam t�buas de uma grande religi�o do futuro, preservadas sob a tinta que um dia quis destru�-las. Sei l�, pode ser que aconte�a. E pode ser tamb�m que tudo desapare�a num tapete de nuvens. Mas prefiro acreditar nos mist�rios que a vida volta e meia oferece.

Enfim, lembrei da obra de Gentileza e do belo enredo de Jo�osinho Trinta e fui colocar o samba da escola para sacudir a manh�, quando deu-se a mel�dia. Ella come�ou a cantar e meu corpo cansado parou, enquanto a alma, cheia das alegrias da noite de batuque, virou de cabe�a para baixo e, de repente, eu voando nos ares da harmonia, imaginei que nossas exist�ncias s�o desfiles, com grandes carros aleg�ricos, um para cada evento importante do nosso enredo. E o dia foi passando com mais vagar pela janela, at� a brisa segurou a respira��o para que alguns dos carros mais delicados passassem pela avenida � beira mar. Congelou-se a imagem daquele momento, a fotografia para sempre guardada nos anais do tempo.

E, na cabe�a, eu ia repassando algumas das mensagens que recebi por causa da tal revisita a um dia escolhido, que eu propus na �ltima cr�nica. Como de h�bito, meus leitores se inspiraram e eu tenho recebido poesia de toda parte, peda�os de lembran�a, retalhos de vidas, que de alguma forma tento costurar para dar sentido � minha. O nosso patchwork particular. As lembran�as de voc�s iam se desenrolando na minha cabe�a, um grande desfile, carros passando em c�mera lenta, Ella cantando ao fundo e o Rio de Janeiro abrindo as cortinas do dia e deixando o sol entrar. Foi assim, esta manh�.

Dormi quase o dia inteiro, um sono picado, besta, de quem parece que tem medo de sonhar. Acordando toda hora, achando que ainda n�o tinha descansado o bastante, e volta e meia lembrando de um relato, de uma lembran�a de algu�m, que de longe me ajuda, agora, a escrever esta cr�nica. N�o consegui dormir direito, no final das contas, enquanto o dia corria c�lere l� fora, ao encontro das luzes do segundo dia. Fiquei zanzando pela casa vazia e acabei sentado no computador, recebendo novas mensagens, mais cora��es rebentando em flor e gente que fala bonito e pensa bonito e eu vou lendo como quem se ilustra. Acabei marcando todas as mensagens que voc�s me enviaram e quero ver se consigo realmente fazer uma cr�nica que seja uma colcha dos retalhos de todos os nossos cora��es urbanos (ou, pelo menos, os desses encontros �s quintas-feiras). N�o sei ainda de que jeito, mas uma hora, assim como quem n�o quer nada, eu me inspiro.

E, j� que todos confessaram t�o despudoramente suas prefer�ncias, sinto-me na obriga��o de compartilhar igualmente meus segredos, de modo que, muito aqui entre n�s, se me dado fosse este direito, o dia que revisitaria seria aquele mais comum, um dia de semana qualquer. Nada especial. Apenas um brilho verde nos olhos, um meio sorriso no canto da boca e uma promessa de amor no ar. Esse dia seria o revisitado.

Se me dado fosse esse direito.



01/03/2001 - O GLOBO

�Este � o profeta Gentileza que gera gentileza, amor, mostra a maldade da humanidade�, apresenta-se na pilastra de n�mero 14 aquele que nasceu na cidade paulista de Cafel�ndia, com o nome de Jos� Datrino. A id�ia de um mundo regido pela gentileza foi pregada por Datrino desde que, em dezembro de 1961, abandonou fam�lia e profiss�o para assumir uma nova identidade.

Consolar os parentes das v�timas do inc�ndio de um circo em Niter�i, mudar-se para o local da trag�dia e semear ali um jardim de flores foi sua primeira miss�o. Como aut�ntica f�nix que renasce das cinzas, Gentileza come�ou ali seus 35 anos de peregrina��o. �O valor fundamental deste homem que ressurge � a gentileza. � ela que ir� cal�ar suas rela��es�, diz Leonardo Guelman, coordenador do projeto Rio com Gentileza.