Eu vinha dirigindo pela enseada de Botafogo, o dia tinha nascido sobre o
desfile da Beija-Flor e a manh� soprou uma brisa fresca, antes de o Sol inundar
tudo. Mas l� vinha eu, cansado, de janela aberta, sorvendo o ar da minha cidade,
feliz da vida, quando apertei a tecla errada no aparelho de som e, ao inv�s de
entrar o samba da Grande Rio, Ella Fitzgerald surgiu cantando Cole Porter, com
aquela do�ura e categoria de sempre. Imediatamente, o mundo mudou l� fora, minha
cabe�a deu uma guinada violenta e o olhar foi redirecionado. Ela mal come�ou a
cantar e o olhar foi redirecionado. M�sica faz isso com a gente, �s vezes.
M�sica nos atira para o ar de repente, sem aviso. � isso. Rouba o ch�o e
estende um tapete de nuvens no lugar. Ella Fitzgerald fez isso, esta manh�,
quando eu dirigia pela enseada de Botafogo, achando linda a minha cidade,
imaginando o que ser� dela num futuro que eu n�o verei. Um futuro distante,
quando arque�logos importantes recuperar�o parte dos grandes blocos de concreto
com as inscri��es do profeta Gentileza, aquelas mesmas que me acostumei a ler e
reler nas idas e vindas da Ilha. A beleza gr�fica das letras e a composi��o de
suas profecias, de suas palavras de amor. E simplesmente apagaram tudo. N�o
tiveram sequer o bom senso de perguntar a n�s, moradores da cidade, para quem as
palavras eram dirigidas. Junto com as palavras de Gentileza, afogados na tinta
do poder, v�o-se peda�os das minhas viagens e dos meus sonhos, sacolejando nos
�nibus, o olhar perdido na feia paisagem da Avenida Brasil, os olhos
adolescentes projetando seus sonhos no comprido muro do cemit�rio do Caju. Tudo
apagado. Por um tempo, talvez. Quem sabe, por esses misteriosos descaminhos,
aquelas n�o sejam t�buas de uma grande religi�o do futuro, preservadas sob a
tinta que um dia quis destru�-las. Sei l�, pode ser que aconte�a. E pode ser
tamb�m que tudo desapare�a num tapete de nuvens. Mas prefiro acreditar nos
mist�rios que a vida volta e meia oferece.
Enfim, lembrei da obra de Gentileza e do belo enredo de Jo�osinho Trinta e
fui colocar o samba da escola para sacudir a manh�, quando deu-se a mel�dia.
Ella come�ou a cantar e meu corpo cansado parou, enquanto a alma, cheia das
alegrias da noite de batuque, virou de cabe�a para baixo e, de repente, eu
voando nos ares da harmonia, imaginei que nossas exist�ncias s�o desfiles, com
grandes carros aleg�ricos, um para cada evento importante do nosso enredo. E o
dia foi passando com mais vagar pela janela, at� a brisa segurou a respira��o
para que alguns dos carros mais delicados passassem pela avenida � beira mar.
Congelou-se a imagem daquele momento, a fotografia para sempre guardada nos
anais do tempo.
E, na cabe�a, eu ia repassando algumas das mensagens que recebi por causa da tal
revisita a um dia escolhido, que eu propus na �ltima cr�nica. Como de h�bito,
meus leitores se inspiraram e eu tenho recebido poesia de toda parte, peda�os de
lembran�a, retalhos de vidas, que de alguma forma tento costurar para dar
sentido � minha. O nosso patchwork particular. As lembran�as de voc�s iam se
desenrolando na minha cabe�a, um grande desfile, carros passando em c�mera
lenta, Ella cantando ao fundo e o Rio de Janeiro abrindo as cortinas do dia e
deixando o sol entrar. Foi assim, esta manh�.
Dormi quase o dia inteiro, um sono picado, besta, de quem parece que tem medo
de sonhar. Acordando toda hora, achando que ainda n�o tinha descansado o
bastante, e volta e meia lembrando de um relato, de uma lembran�a de algu�m, que
de longe me ajuda, agora, a escrever esta cr�nica. N�o consegui dormir direito,
no final das contas, enquanto o dia corria c�lere l� fora, ao encontro das luzes
do segundo dia. Fiquei zanzando pela casa vazia e acabei sentado no computador,
recebendo novas mensagens, mais cora��es rebentando em flor e gente que fala
bonito e pensa bonito e eu vou lendo como quem se ilustra. Acabei marcando todas
as mensagens que voc�s me enviaram e quero ver se consigo realmente fazer uma
cr�nica que seja uma colcha dos retalhos de todos os nossos cora��es urbanos
(ou, pelo menos, os desses encontros �s quintas-feiras). N�o sei ainda de que
jeito, mas uma hora, assim como quem n�o quer nada, eu me inspiro.
E, j� que todos confessaram t�o despudoramente suas prefer�ncias, sinto-me na
obriga��o de compartilhar igualmente meus segredos, de modo que, muito aqui
entre n�s, se me dado fosse este direito, o dia que revisitaria seria aquele
mais comum, um dia de semana qualquer. Nada especial. Apenas um brilho verde nos
olhos, um meio sorriso no canto da boca e uma promessa de amor no ar. Esse dia
seria o revisitado.
Se me dado fosse esse direito.
01/03/2001 - O GLOBO
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