Ode  ao  Rio  de  Janeiro

Pablo Neruda

Rio de Janeiro, a �gua

� a tua bandeira,

agita as suas cores,

sopra e retine no vento,

cidade,

negra n�iade,

de claridade sem fim,

de abrasadora sombra,

de pedra com espuma

� o teu tecido,

o cadenciado balan�o

da tua rede marinha,

o azul movimento

dos teus p�s areentos,

o aceso ramo

dos teus olhos.

 

Rio, Rio de Janeiro,

os gigantes

salpicam a tua est�tua

com pontos de pimenta,

deixaram

na tua boca

dorsos do mar, barbatanas

perturbadoramente mornas,

promont�rios

da fertilidade, tetas da �gua,

declives de granito,

l�bios de ouro,

e entre as pedras quebradas

o sol marinho

iluminando

rutilantes espumas.

 

� Beleza,

� cidadela

de pele fosforescente,

rom�

de carne azul, � deusa

tatuada em sucessivas

ondas de �gata negra,

da tua nua est�tua

um aroma de jasmim molhado

se desprende, vem no suor, um �cido

pegajoso

de cafezais e de frutarias

e pouco a pouco sob o teu diadema,

entre a dupla maravilha

dos teus seios,

entre c�pula e c�pula

da tua natureza

aparece o dente da desgra�a,

a cancerosa cauda

da mis�ria humana,

nos montes leprosos

o cacho inclemente

das vidas,

pirilampo terr�vel,

esmeralda

extra�da

do sangue,

o teu povo estende-se

at� aos confins da selva

num rumor abafado,

passos e surdas vozes,

migra��es de esfomeados,

escuros p�s com sangue,

o teu povo,

para l� dos rios,

na densa

amaz�nia,

esquecido,

no Norte

de espinhos,

esquecido,

com sede nos planaltos,

esquecido,

nos portos mordido

pela febre,

esquecido,

� porta

da casa de onde o expulsaram,

pedindo-te

apenas um olhar,

esquecido.

Noutras terras,

reinos, na��es,

ilhas,

a cidade capital,

a coroada,

foi colm�ia

de trabalhos humanos,

amostra do azar

e do acerto,

f�gado da pobre monarquia,

cozinha da p�lida rep�blica.

Tu �s a espelhante

montra

de uma sombria noite,

a garganta

coberta

de �guas marinhas

e ouro

de um corpo

abandonado,

�s a porta

delirante

de uma casa vazia,

�s

o antigo pecado,

a salamandra

cruel,

intacta

na fogueira

das longas dores do teu povo,

�s

Sodoma,

Sim,

Sodoma

deslumbrante,

com um fundo sombrio

de veludo verde,

rodeada

de crespa sombra, de �guas

ilimitadas, dormes

nos bra�os

da desconhecida

Primavera

dum planeta selvagem.

Rio, Rio de Janeiro,

quantas coisas tenho

para te dizer. Nomes

que nunca esquecerei,

amores

que amadurecem o seu perfume,

encontros contigo, quando

do teu povo

uma onda

agregue ao teu diadema

a ternura,

quando

� tua bandeira de �guas

subam as estrelas

do homem,

n�o do mar,

n�o do c�u,

quando

no esplendor

da tua aur�ola

eu veja

o negro, o branco, o filho

da tua terra e do teu sangue,

elevados

at� � dignidade da tua formosura,

iguais na luz resplandecente,

propriet�rios

humildes e orgulhosos

do espa�o e da alegria,

ent�o, Rio de Janeiro,

quando

alguma vez

para todos os teus filhos,

e n�o somente para alguns,

abrires o teu sorriso, espuma

de morena n�iade,

ent�o

eu serei o teu poeta,

chegarei com a minha lira

para cantar em teu aroma

e na tua cintura de platina

dormirei,

na tua areia

incompar�vel,

na frescura azul do leque

que tu abrir�s no meu sono

como as asas de uma

gigantesca

borboleta marinha.

 

Pablo Neruda, 1956

Nota: 

Poema extra�do do livro : "Odas Elementales" de Pablo Neruda, traduzido para o portugu�s por Luis Pignatelli (Publica��es Dom Quixote)  Lisboa / 1999 Livraria Portugal : [email protected] Tel: 0xx11- 31041748 / 31040128


 

"Contra a estupidez humana, at� mesmo os deuses lutam em v�o"

                                                                                                      Schiller       

 

 

Vista a�rea da Favela Rio das Pedras, onde moram 50 mil pessoas (Itanhang�): os barracos est�o avan�ando em dire��o � Lagoa do Camorim

N�meros do d�ficit urbano e habitacional
(Jornal O Globo, 21/07/99)

  • 1,5 milh�o de pessoas moram em favelas, condom�nios degradados e loteamentos sem infra-estrutura.  � o d�ficit urbano da cidade.

  • 10 mil fam�lias vivem em condi��es de alto risco, � o d�ficit habitacional. Cerca de 30 mil pessoas, ou quase a popula��o inteira do bairro do Leblon.

  • 5,5 milh�es � a popula��o estimada do Rio.

 

"ODE ao RIO" - (porta delirante de uma casa vazia)

O poema de Pablo Neruda , "Ode ao Rio de Janeiro", num momento de ternura, come�a como um c�ntico de amor e deslumbramento pela cidade, aos poucos se transforma em lamento pelo contraste entre a beleza do lugar e a mis�ria do seu povo. Neruda, que escreveu o poema em 1956, depois de uma viagem ao Brasil, percebeu o quanto s�o poucos os que conseguem realizar as fantasias que ela desperta e promete � primeira vista.

Por isso chamou-a de "porta delirante de uma casa vazia..."  Neruda tamb�m percebeu e registrou a sensualidade difusa, uma tens�o er�tica, e chamou-a de "Antigo Pecado", "Salamandra Cruel",  "Sodoma".  E termina com um apelo po�tico para que um dia os filhos da  "cidade maravilhosa",  sejam elevados � mesma dignidade da sua beleza.

Jos� Eduardo O. Bruno

Agradecemos ao Jos� Eduardo pelo poema.