Quem poderia adivinhar o que havia dentro do pacote que apareceu no s�tio?

H� coisa de dois ou tr�s meses
apareceu, no port�o do s�tio, um pacote grande, embrulhado num saco de lixo
preto. Ningu�m viu quem trouxe. Amanheceu e estava l�. Assim que foi notado,
ficaram todos da casa, b�pedes e quadr�pedes, muito cabreiros com a sua
presen�a. Nos dias de hoje, ningu�m v� com confian�a ou simpatia pacotes
grandes, embrulhados em sacos de lixo pretos.
Os cachorros cheiraram e latiram, os gatos mantiveram dist�ncia, o Dirceu olhou
de longe, cutucou com uma vareta, chamou Mam�e. O conte�do parecia ser duro,
s�lido, como madeira. N�o era nada morto, com certeza. E n�o parecia ser bomba,
muito embora ningu�m da fam�lia tenha a mais remota id�ia de como seja uma
bomba, salvo pelo que se v� no cinema e nos desenhos animados.
Finalmente, depois de mais cutucadas e de muita hesita��o, o pacote foi trazido
para dentro, e aberto com o cuidado que a desconfian�a recomendava. Quando o
conte�do se revelou, surpresa total: quem poderia imaginar que um poema roubado
h� 30 anos voltasse ao lar daquela maneira?!
Quando o s�tio ficou pronto, em
princ�pios dos anos 60, uma das primeiras provid�ncias dos meus pais foi
espalhar pelo jardim e pela floresta uma d�zia de poemas. Papai os selecionava,
Mam�e os pintava em tabuletas e ambos escolhiam juntos, com capricho, as �rvores
e os cantinhos onde seriam expostos. Passear pelo s�tio era como entrar numa
pequena antologia sentimental.
Com o tempo, as tabuletas foram sumindo. Algumas queimaram junto com as suas
�rvores nos inc�ndios que, h� alguns anos, eram comuns na regi�o e que, apesar
dos esfor�os do pessoal l� de casa, eventualmente atingiam partes do terreno.
Outras foram v�timas do tempo. A maioria, por�m, desapareceu sem deixar
vest�gios.
O poema devolvido chama-se "Casa
antiga", foi escrito em 1964 por minha madrinha Cec�lia Meireles e dedicado a
Nora e Paulo R�nai:
Forrarei tua casa j� t�o antiga
Com um papel que imita as paredes de tijolo.
Ficar� t�o lindo como se estiv�ssemos na Holanda.
Forrarei tua casa assim, mas por dentro,
De modo que, longe de todas as vistas,
Ser� como se estiv�ssemos ao ar livre, no jardim.
E deixarei uma parede quebrada ? n�o uma porta, n�o uma janela:
Uma parede quebrada por onde passe um ramo de goiabeira
Carregado de flores e vespas.
Parecer� que estamos sonhando,
E estamos sonhando mesmo,
E parecer� que estamos vivendo,
E a vida n�o � mesmo um sonho imposs�vel?
Dentro do pacote, junto com a
tabuleta, veio um bilhete escrito em letra pouco cultivada, na folha arrancada
de um caderno. Dizia o seguinte: "Quando era
menino achei este quadro lindo, pelo poema. Pe�o perd�o por ter roubado este
quadro. Hoje me converti a Jesus e sinto necessidade de devolv�-lo. Sinto-me
envergonhado pela minha atitude. Mais era s� um menino. Pe�o perd�o a Deus e a
voc�s. E que voc�s tamb�m consigam perdoar."
N�o havia nome, assinatura, nada. Ficamos com muita pena, pois ter�amos gostado
de conhecer e abra�ar o menino antigo que roubou o poema e o homem correto que o
devolveu, passados tantos anos. Mal sabe ele que nos deu um presente muito maior
do que o que levou: um mundo onde crian�as roubam poemas e adultos os devolvem �
um mundo de beleza e de esperan�a.
(O Globo, Segundo Caderno, 04.01.2007)
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