Levando-se
em conta nossa pitoresca realidade contempor�nea, at� que a quantidade
de besteiras dita e escrita sobre o controvertido anivers�rio do Brasil
n�o d� para surpreender. O que chateia um pouquinho � que diversas
dessas besteiras continuar�o a perseguir-nos pela vida afora, algumas
talvez trazendo conseq��ncias indesejadas. A principal delas,
naturalmente, � a de que o Brasil come�ou em 1500, quando nem mesmo no
nome isso aconteceu, posto que �ramos uma ilha quando os portugueses
primeiro viram as terras daqui e, durante muito tempo, o Brasil que
duvidosamente existia n�o tinha nada a ver com o Brasil de hoje.
A impress�o que se
tem � que, do povo �s autoridades e mesmo aos entendidos, acha-se que
o Brasil j� estava no mapa, com as fronteiras e caracter�sticas
atuais, no momento em que Cabral chegou. Teria tido at� um nome nativo,
j� proposto, pelos mais exaltados, para substituir "Brasil":
Pindorama, designa��o supostamente dada pelos �ndios ao nosso pa�s.
N�o sou historiador, mas tamb�m n�o sou t�o burro assim para
acreditar que os �ndios tinham qualquer no��o geopol�tica, ou alguma
id�ia de que pertenciam a um "pa�s" chamado Pindorama. N�o
havia qualquer pa�s, � claro, nem sequer a palavra Pindorama devia
fazer sentido para os ocupantes que os portugueses encontraram aqui, se
� que ela era usada mesmo. No m�ximo, significaria o �nico mundo
conhecido deles. Parece assim que os nossos �ndios administravam imp�rios
e cidades como os dos maias, astecas ou incas, quando na verdade, que
perdura at� hoje, viviam neoliticamente e a maioria esgotava os
numerais em tr�s - era o m�ximo que conseguiam contar e o resto se
designava como "muito".
Como corol�rio disso,
vem a tese de que fomos invadidos. Com perd�o da formula��o pouco
ortodoxa da pergunta, quem fomos invadidos? Todos n�s, salvante os mais
ou menos 400 mil �ndios que sobraram por a�, somos descendentes dos
invasores, inclusive os negros, que n�o vieram por livre e espont�nea
vontade, mas tamb�m n�o viviam aqui na �poca de Cabral e hoje
constituem parte indissol�vel de nossa, digamos assim, identidade.
Imagino que haja quem pense que, diante de uma delega��o portuguesa,
algum diplomata ou general �ndio tenha argumentado que se tratava da
ocupa��o ilegal de um Estado soberano do Oiapoque ao Chu� e que
aquilo n�o estava certo, cabendo talvez a interven��o das Na��es
Unidas.
Se a Hist�ria tivesse
tomado rumos um pouquinho diferentes, nossa �rea hoje podia estar
subdividida em v�rios pa�ses diferentes, uns falando portugu�s,
outros espanhol, outros holand�s, outros franc�s. Do Tratado de
Tordesilhas �s capitanias heredit�rias, aos movimentos separatistas e
� a��o do Bar�o do Rio Branco, muita coisa se passou para que nos
tenhamos tornado o Brasil que somos hoje. Ningu�m chegou aqui e
descobriu o Brasil j� pronto e acabado (se � que podemos falar assim
mesmo agora), isto � uma perfeita maluquice. O Brasil, � mais do que
�bvio, se construiu lentamente e �s vezes aos trancos e barrancos.
Compreende-se que
nativos de pa�ses como o Peru, o M�xico e outros, notadamente na Am�rica
Central, se sintam invadidos. At� hoje s�o numerosos e discriminados,
muitos nem falam espanhol e, quando aportaram os conquistadores, tinham
cidades maiores do que as europ�ias. Mas n�s? Quem, com a not�vel
exce��o do amigo patax� e da jovem senhora xavante que ora me l�em,
foi aqui invadido? Vamos supor, j� jogando no terreno da absoluta
impossibilidade, que o chamado mundo civilizado ignorasse a exist�ncia
destas terras at� hoje. Ter�amos aqui, n�o o Brasil, mas uns quatro
milh�es de nativos de bei�o furado e pintados de urucu e jenipapo
(nada contra, at� porque furamos as orelhas, nos tatuamos e usamos
batom, � uma quest�o de estilo), que n�o falavam as l�nguas uns dos
outros, matavam-se entre si com alguma regularidade e cuja tecnologia n�o
era propriamente da era inform�tica. Brasil mesmo, nenhum.
Mas est� ficando
politicamente correto, suspeito eu que por motivos incorret�ssimos,
abra�ar a tese da invas�o do Brasil. "N�s fomos invadidos, fomos
invadidos!", grita em portugu�s brasileiro, a �nica l�ngua que
sabe, um manifestante mulato, em Porto Seguro. Ser� poss�vel que n�o
se perceba a vastid�o dessa sandice? Daqui a pouco - e a� � que mora
o perigo - entra na moda de vez e os resqu�cios das na��es ind�genas
que ainda subsistem dever�o aspirar � soberania sobre os territ�rios
que ocupam. Como na Europa Oriental, cada etnia querer� ter seu estado
e sua autonomia, com bandeira, hino, moeda (d�lar, para facilitar) e
passaporte. Que beleza, formar-se-� por exemplo, depois de um
plebiscito entre os �ndios, o Estado Ianom�mi, completamente
independente e ocupando �rea bem maior do que muitos outros pa�ses do
mundo juntos, reconhecido pelas organiza��es internacionais e
protegido pelo grande paladino da liberdade dos povos, os Estados
Unidos, que mandariam mission�rios e ajuda econ�mica e tecnol�gica e,
desta forma, investiriam desinteressadamente numa �rea t�o pobre em
recursos econ�micos e que t�o pouca cobi�a desperta, como a Amaz�nia.
E, se protest�ssemos, a Otan bombardearia o Viaduto do Ch�, a Ponte
Rio-Niter�i e o Elevador Lacerda, como advert�ncia.
Cometeram-se e
cometem-se crimes inomin�veis contra os �ndios, que devem ter seus
direitos assegurados. Tamb�m se cometeram e cometem crimes contra
grande parte dos brasileiros n�o-�ndios, outra vergonha que precisa
ser abolida. Mas isso n�o tem nada a ver com a tal invas�o, assim como
a outra s�rie de besteiras intensamente veiculada, segundo a qual, se n�o
houv�ssemos sido colonizados pelos portugueses, estar�amos em melhor
situa��o, assim como est�o em melhor situa��o a antiga Guiana
Inglesa, o Suriname, a Indon�sia, a Nig�ria, a Som�lia, o Sud�o e um
ros�rio intermin�vel de ex-col�nias europ�ias, quando na verdade se
trata de um caso claro de o buraco achar-se bem mais embaixo. Como �
que se diz "babaquice" em tupi-guarani?
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