O BESTEIROL DOS 500 ANOS

Jo�o Ubaldo Ribeiro

Levando-se em conta nossa pitoresca realidade contempor�nea, at� que a quantidade de besteiras dita e escrita sobre o controvertido anivers�rio do Brasil n�o d� para surpreender. O que chateia um pouquinho � que diversas dessas besteiras continuar�o a perseguir-nos pela vida afora, algumas talvez trazendo conseq��ncias indesejadas. A principal delas, naturalmente, � a de que o Brasil come�ou em 1500, quando nem mesmo no nome isso aconteceu, posto que �ramos uma ilha quando os portugueses primeiro viram as terras daqui e, durante muito tempo, o Brasil que duvidosamente existia n�o tinha nada a ver com o Brasil de hoje.

A impress�o que se tem � que, do povo �s autoridades e mesmo aos entendidos, acha-se que o Brasil j� estava no mapa, com as fronteiras e caracter�sticas atuais, no momento em que Cabral chegou. Teria tido at� um nome nativo, j� proposto, pelos mais exaltados, para substituir "Brasil": Pindorama, designa��o supostamente dada pelos �ndios ao nosso pa�s. N�o sou historiador, mas tamb�m n�o sou t�o burro assim para acreditar que os �ndios tinham qualquer no��o geopol�tica, ou alguma id�ia de que pertenciam a um "pa�s" chamado Pindorama. N�o havia qualquer pa�s, � claro, nem sequer a palavra Pindorama devia fazer sentido para os ocupantes que os portugueses encontraram aqui, se � que ela era usada mesmo. No m�ximo, significaria o �nico mundo conhecido deles. Parece assim que os nossos �ndios administravam imp�rios e cidades como os dos maias, astecas ou incas, quando na verdade, que perdura at� hoje, viviam neoliticamente e a maioria esgotava os numerais em tr�s - era o m�ximo que conseguiam contar e o resto se designava como "muito".

Como corol�rio disso, vem a tese de que fomos invadidos. Com perd�o da formula��o pouco ortodoxa da pergunta, quem fomos invadidos? Todos n�s, salvante os mais ou menos 400 mil �ndios que sobraram por a�, somos descendentes dos invasores, inclusive os negros, que n�o vieram por livre e espont�nea vontade, mas tamb�m n�o viviam aqui na �poca de Cabral e hoje constituem parte indissol�vel de nossa, digamos assim, identidade. Imagino que haja quem pense que, diante de uma delega��o portuguesa, algum diplomata ou general �ndio tenha argumentado que se tratava da ocupa��o ilegal de um Estado soberano do Oiapoque ao Chu� e que aquilo n�o estava certo, cabendo talvez a interven��o das Na��es Unidas.

Se a Hist�ria tivesse tomado rumos um pouquinho diferentes, nossa �rea hoje podia estar subdividida em v�rios pa�ses diferentes, uns falando portugu�s, outros espanhol, outros holand�s, outros franc�s. Do Tratado de Tordesilhas �s capitanias heredit�rias, aos movimentos separatistas e � a��o do Bar�o do Rio Branco, muita coisa se passou para que nos tenhamos tornado o Brasil que somos hoje. Ningu�m chegou aqui e descobriu o Brasil j� pronto e acabado (se � que podemos falar assim mesmo agora), isto � uma perfeita maluquice. O Brasil, � mais do que �bvio, se construiu lentamente e �s vezes aos trancos e barrancos.

Compreende-se que nativos de pa�ses como o Peru, o M�xico e outros, notadamente na Am�rica Central, se sintam invadidos. At� hoje s�o numerosos e discriminados, muitos nem falam espanhol e, quando aportaram os conquistadores, tinham cidades maiores do que as europ�ias. Mas n�s? Quem, com a not�vel exce��o do amigo patax� e da jovem senhora xavante que ora me l�em, foi aqui invadido? Vamos supor, j� jogando no terreno da absoluta impossibilidade, que o chamado mundo civilizado ignorasse a exist�ncia destas terras at� hoje. Ter�amos aqui, n�o o Brasil, mas uns quatro milh�es de nativos de bei�o furado e pintados de urucu e jenipapo (nada contra, at� porque furamos as orelhas, nos tatuamos e usamos batom, � uma quest�o de estilo), que n�o falavam as l�nguas uns dos outros, matavam-se entre si com alguma regularidade e cuja tecnologia n�o era propriamente da era inform�tica. Brasil mesmo, nenhum.

Mas est� ficando politicamente correto, suspeito eu que por motivos incorret�ssimos, abra�ar a tese da invas�o do Brasil. "N�s fomos invadidos, fomos invadidos!", grita em portugu�s brasileiro, a �nica l�ngua que sabe, um manifestante mulato, em Porto Seguro. Ser� poss�vel que n�o se perceba a vastid�o dessa sandice? Daqui a pouco - e a� � que mora o perigo - entra na moda de vez e os resqu�cios das na��es ind�genas que ainda subsistem dever�o aspirar � soberania sobre os territ�rios que ocupam. Como na Europa Oriental, cada etnia querer� ter seu estado e sua autonomia, com bandeira, hino, moeda (d�lar, para facilitar) e passaporte. Que beleza, formar-se-� por exemplo, depois de um plebiscito entre os �ndios, o Estado Ianom�mi, completamente independente e ocupando �rea bem maior do que muitos outros pa�ses do mundo juntos, reconhecido pelas organiza��es internacionais e protegido pelo grande paladino da liberdade dos povos, os Estados Unidos, que mandariam mission�rios e ajuda econ�mica e tecnol�gica e, desta forma, investiriam desinteressadamente numa �rea t�o pobre em recursos econ�micos e que t�o pouca cobi�a desperta, como a Amaz�nia. E, se protest�ssemos, a Otan bombardearia o Viaduto do Ch�, a Ponte Rio-Niter�i e o Elevador Lacerda, como advert�ncia.

Cometeram-se e cometem-se crimes inomin�veis contra os �ndios, que devem ter seus direitos assegurados. Tamb�m se cometeram e cometem crimes contra grande parte dos brasileiros n�o-�ndios, outra vergonha que precisa ser abolida. Mas isso n�o tem nada a ver com a tal invas�o, assim como a outra s�rie de besteiras intensamente veiculada, segundo a qual, se n�o houv�ssemos sido colonizados pelos portugueses, estar�amos em melhor situa��o, assim como est�o em melhor situa��o a antiga Guiana Inglesa, o Suriname, a Indon�sia, a Nig�ria, a Som�lia, o Sud�o e um ros�rio intermin�vel de ex-col�nias europ�ias, quando na verdade se trata de um caso claro de o buraco achar-se bem mais embaixo. Como � que se diz "babaquice" em tupi-guarani?