GRANDE QUALIDADE DE VIDA

Jo�o Ubaldo Ribeiro

Antigamente, n�o havia qualidade de vida. Quer dizer, n�o se falava em qualidade de vida. Agora s� se fala em qualidade de vida e, em mat�ria de qualidade de vida, sou um dos sujeitos mais amea�ados que conhe�o. Na verdade, me dizem que venho experimentando uma consider�vel melhora de qualidade de vida, mas tenho algumas d�vidas. Minha qualidade de vida, na minha modesta opini�o pessoal, n�o tem melhorado essas coisas todas, com as provid�ncias que me fazem tomar e as viol�ncias que sou obrigado a cometer contra mim mesmo. Geralmente suporto bem conversas sobre qualidade de vida, mas tendo cada vez mais a retirar-me do c�rculo ou recinto onde me encontro, quando come�am a falar nela.

A comida mesmo me faz estar considerando, no momento, comprar uma balan�a de precis�o e um computador de bolso com um programa alimentar especial. Antes eu comia do que gostava. Fui criado, por exemplo, com comida frita na banha de porco ou, mais tarde, na gordura de coco. Meus av�s, todos mortos depois dos noventa (com exce��o do que s� comia o saudabil�ssimo azeite de oliva � e ele morreu de AVC) comiam banha de porco e torresmo regularmente, mas, claro, ainda n�o tinha sido informados de que se tratava de pr�tica mortal. Ali�s, comida saud�vel, que se ensinava nos manuais at� para crian�as, era composta de leite integral, ovos, p�o (com manteiga), carne vermelha ou peixe � frito, ent�o, era uma maravilha para est�magos delicados � frutas e legumes � vontade.

Depois disso, at� atingirmos a atual qualidade de vida, fulminaram o leite. Alimento completo, passou a ser encarado com desconfian�a, e hoje n�o sei de ningu�m que beba leite integral, a n�o ser, talvez, algum gorila do Zool�gico. O ovo sofreu ataque violent�ssimo, assim como o a��car, a ponto de, tenho certeza, v�rias receitas tradicionais de doces serem hoje achados arqueol�gicos, e as poucas que restam constituam uma imita��o desenxabida das que empregavam ingredientes normais e n�o essas massas e l�quidos insossos que vivem distribuindo, como leite, manteiga etc. Claro, mudaram de id�ia a respeito do ovo recentemente, mas a mudan�a de id�ias deles s� pode ser vista com desconfian�a.

N�o houve o tempo, e n�o � preciso ser nenhum Matusal�m para lembrar, em que para substituir a manteiga era exigida margarina, alimento saudabil�ssimo, que n�o fazia nenhuma das monstruosidades operadas pela manteiga? O neg�cio era margarina e durou bastante, at� que descobriram que margarina pode ser at� pior do que manteiga. Melhor, na verdade, abolir manteiga inteiramente. E margarina, claro, nem pensar. Carne vermelha � uma abomina��o. Carne de porco � um terror. V�sceras de qualquer tipo devem ser evitadas como o diabo foge da cruz. A��car, meu Deus! Sorvete? S� para crian�as, e crian�as de pais irrespons�veis. Ali�s, � um bom desafio achar algo unanimemente aprovado pelos nutricionistas, a n�o ser, tudo indica, capim.

Mas ningu�m pode viver de capim, de maneira que, relutantemente, deixam a gente comer uma coisinha qualquer, contanto que n�o ultrapassemos o limite de calorias e n�o ingiramos o proibido e, mesmo assim, com restri��es. Peixe cozido ou grelhado, por exemplo, geralmente pode, mas paira sobre seu infeliz consumidor a amea�a de que n�o esteja fresco ou esteja contaminado por metais pesados e pelo lixo que jogam em rios e mares. Peito de frango (e eu que sou homem de coxas e antecoxas) tamb�m assusta, por causa dos horm�nios que d�o �s galinhas e as neuroses que elas desenvolvem, nascendo sem m�e e sendo criadas em cub�culos em que mal podem se mexer, a ponto de terem de ser debicadas, para n�o se autodevorarem histericamente. Ou seja, mesmo comendo um peito de galinha sem uma gota de qualquer gordura e acompanhado somente por matos e alguns legumes (cuidado com a contamina��o de tomates, cenouras e alfaces!), o infeliz se arrisca.

Mas vou usar o computador para calcular as calorias, as gorduras e outras caracter�sticas de cada refei��o, porque, agora que minha qualidade de vida est� melhorando a cada dia, preciso ser coerente. Fumar, n�o mais, nem uma pitadinha depois do caf� (que ningu�m sabe direito se faz bem ou faz mal, temperado com ado�ante, que tamb�m ningu�m sabe se faz bem ou faz mal). Beber, esque�a, vai deixar voc� demente aos 60, al�m de dar cirrose e hepatite. O famoso copinho de vinho, al�m de ser uma por��o rid�cula, tamb�m est� sendo questionado no momento. Parece que n�o � bem assim, e uma autoridade no assunto disse outro dia no jornal que o melhor � tomar suco de uva � n�o industrializado, � claro, por causa dos aditivos.

Restam tamb�m os exerc�cios. Fico felic�ssimo, quando, suando e bufando no cal�ad�o, sinto o ar fresco invadir os meus pulm�es (preferia logo uma tenda de oxig�nio), as pernas doendo e a certeza de que minha qualidade de vida vai cada vez melhor. At� minha press�o arterial (13 a 14 por 8), que era considerada boa para minha idade, agora j� � alta e o pessoal dos 12 por 8 j� come�a a entrar na faixa de risco. Enfim, � duro manter esta boa qualidade de vida, ainda mais agora que me anunciam que caminhadas somente n�o bastam, tem de malhar tamb�m. Ou seja, temos que nos dedicar o tempo todo a manter nossa qualidade de vida. Mas, aqui entre n�s, se voc�s no futuro virem um gord�o tomando caldinho de feij�o com torresmo no boteco, depois de um chopinho, e o acharem vagamente parecido comigo, talvez seja eu mesmo, sofrendo de uma pavorosa qualidade de vida. A diferen�a � grande. Tanto eu quanto voc�s vamos morrer do mesmo jeito, mas voc�s, depois da excelente qualidade de vida que est�o desfrutando a� com sua r�cula com suco de br�colis, v�o ter uma �tima qualidade de morte, falecendo em perfeita sa�de e eu l�, no meu vel�rio, com um sorriso obeso e contente no rosto dissoluto.