|
Uma leitora me escreve,
alertando para o fato de o excesso de mem�ria e peso, na bagagem de lembran�as,
retardar o avan�o na caminhada. Segundo ela, uma mochila mais leve permite
saltos mais altos, horizontes mais distantes e descobertas mais r�pidas.
Aconselha-me, cheia de carinho, a esvaziar a mala e arrumar tudo de novo,
atirando fora aquilo que eu julgar desnecess�rio.
Estou pensando na mensagem,
sentado aqui, no meio da tarde de s�bado, um vento morno soprando sobre a Lagoa
moribunda. Estou pensando nas coisas que ela me disse e ponderando sobre o que
devo, ou n�o, atirar no lixo - que esp�cie de sentimento e saudade deve-se
permitir escapar da mente, antes que ela se extinga? Estou aproveitando a mudan�a
que se aproxima (mais duas semanas e toda minha vida ser� encaixotada rumo ao
novo endere�o), para limpar as gavetas da mem�ria e selecionar aquilo que vai
e aquilo que fica. � muita coisa, eu admito, mas n�o sei se quero abrir m�o
delas, na verdade. N�o sei que esp�cie de alegria eu vou ser capaz de abra�ar,
sem a lembran�a das minhas m�goas. N�o vou ser capaz de alimentar uma nova
ilus�o, sem o par�metro da solid�o. N�o. N�o vou jogar nada fora, por mais
pesada que esteja a bagagem. Preciso de toda a mem�ria.
Todos precisamos de toda a mem�ria
poss�vel. Para tra�ar novos caminhos, lembrando do esbo�o que primeiro se
riscou. A falta de mem�ria, seja individual ou coletiva, acaba destruindo
qualquer possibilidade de novo, qualquer possibilidade de acerto. Como se err�ssemos
o mesmo erro, outra e outra vez - uma coisa triste!
Outro dia mesmo, est�vamos no
intervalo da grava��o do "Sai de baixo" e assistimos ao programa
sobre os 50 anos de televis�o. Todos ali eram profissionais da �rea, h� j�
algum tempo, e Daniel Filho tinha ido dirigir o programa inaugural e acabamos
prestando uma homenagem a ele, nos nossos cora��es, porque ele j� fez tanta
coisa legal na televis�o, mais da metade do que ali foi mostrado tinha o seu
selo, de alguma forma. Trabalho e talento merecem ser homenageados, sempre. Eu
penso assim. Mas acabei vendo o programa pelos olhos dele, brilhando ao
reconhecer cada momento, cada �ngulo de c�mera, cada colega que partiu, ou que
chegou. Era a mem�ria de toda uma vida. Eu vi. Nos olhos dele.
Quero um dia ter meus olhos
cheios de mem�ria, com o cristalino partido em mil peda�os, cada um deles com
uma hist�ria pr�pria, refletindo mil outras hist�rias. Sei que isso me leva
ao problema inicial da cr�nica - a advert�ncia da leitora a respeito do
excesso. �s vezes, sou mesmo chegado a um exagero, devo confessar. Por isso,
agrade�o o conselho, mas vou continuar com tudo, porque eu acho que um peda�o
da mem�ria individual de cada um de n�s vai juntar-se a outras, para formar o
bloco da mem�ria nacional (e, do jeito que as coisas est�o, quem puder ceder
mais um pouco da sua cota habitual, a na��o agradece). S�o Miguel h� de me
arranjar for�as para carregar a bagagem toda, ladeira acima. Ele � meu chapa,
al�m de xar�.
E, uma vez resolvido a
carregar comigo todo o sentimento, passo � tarefa mais simples de selecionar a
mat�ria. � mais f�cil. Prefiro cortar o excesso de peso nessas coisas. N�o
vou abrir m�o de uma �nica lembran�a, de um �nico gesto, de nenhum beijo -
nem mesmo aquele que me amargou a boca. Vou levar comigo todos os meus sonhos,
os que espoucaram nos c�us e os outros que abortei na calada da noite. � a
minha hist�ria, o meu tra�ado.
Escrevo no meio de uma tarde
estranha, cinzenta e abafada. A Lagoa, estendida a meus p�s, tenta respirar,
asfixiada pelo nosso descaso. Pela nossa falta de mem�ria e de respeito. Eu vou
olhar para ela e � um espelho escuro, de uma cor triste, nessa tarde. Elba vai
dar um show de forr�, hoje � noite. Talvez eu v�, para dan�ar e celebrar o
fato de ainda estar aqui, tocando o barco pra frente. Vasculho a minha bagagem e
percebo que a minha vida mudou tanto, desde que eu era um jovem da Ilha do
Governador, pensando em prestar concurso para o Banco do Brasil, que chega a ser
inacredit�vel. Se eu jogar qualquer das minhas lembran�as na lata do lixo,
posso acabar perdendo o fio da meada de vez.
Minha mem�ria � meu
alumbramento. Meu aturdimento com a rapidez com que a vida � capaz de dar
voltas. Ladeira acima, subindo numa maciez, e de repente l� vem o diabo do
carrinho despencando na encosta e voc� fica com aquele grito entalado na goela.
Eu n�o sei como � que algu�m pode gostar de montanha-russa. Nunca vou ser
capaz de entender.
Minha mem�ria � generosa e
manda antigos instant�neos para a minha caixa postal, todo o tempo. Agora
mesmo, debru�ado no parapeito, de olho na Lagoa, j� me despedindo da vista, eu
tive a lembran�a de bem longe, luzes, cheiros, barracas cheias de artigos, a
Feira da Provid�ncia, �s margens dela. Como � que eu poderia saber, naquele
tempo? Como � que eu saberia, naquele fim de tarde, olhando abismado para as
representa��es de outros mundos, inating�veis, ent�o, (porque Miami n�o
ficava na Barra, naquela �poca!) que as coisas iam tomar um rumo muito
diferente daquele que eu imaginei, um dia?
Como � que eu poderia saber
que a Lagoa, naquela tarde fagueira, j� tinha come�ado a morrer?
|