O Carioca �. Antes de tudo.

Mill�r Fernandes

Os paulistanos(!) que me perdoem, mas ser carioca � essencial. Os derrotistas que me desculpem, mas o carioca ta� mesmo pra ficar e seu jeito n�o mudou. Continua livre por mais que o prendam, buscando uma comunica��o humana por mais que o agridam, aceitando o p�o que o diabo amassou como se fosse o leite da bondade humana. O carioca, todos sabem, � um cara nascido dois ter�os no Rio e outro ter�o em Minas, Cear�, Bahia, e S�o Paulo, sem falar em todos os outros Estados, sobretudo o maior deles o estado de esp�rito. Tira de letra, o carioca, no futebol como na vida. N�o � um conformista -- mas sabe que a vida � aqui e agora e que tristezas n�o pagam d�vidas. Sem fundamental viol�ncia, a viol�ncia nele � t�o rara que a express�o "botei pra quebrar" significa exatamente o contr�rio, que n�o botou pra quebrar coisa nenhuma, mas apenas "rasgou a fantasia", conseguiu uma profunda e alegre comunica��o -- numa festa, numa reuni�o, num bate-coxa, num ato de amor ou de paix�o -- e se divertiu �s pampas. Sem falar que sua divers�o � definitivamente coletiva, ligada � dos outros. Pois, ou est� na rua, que � de todos, ou no recesso do lar, que, no Rio � sempre, em qualquer classe social, uma open-house, aberta sob o signo human�stico do "pode vir que a casa � sua".

Carioca, �. Moreno e de 1,70 metro de altura na minha gera��o, com muitos louros de 1,80 metro importados da Escandin�via na gera��o atual, o carioca pensa que n�o trabalha. Virador por natureza, janota por defesa psicol�gica, autocr�tico e autogozador n�o poupando, naturalmente, os amigos e a m�e dos amigos -- ele vai correndo � praia no tempo do almo�o apenas pra livrar a cara da vergonhosa pecha de trabalhador incans�vel. E nisso se op�e frontalmente ao "paulista", que, se tiver que ir � praia nos dias da semana,vai escondido pra ningu�m pensar que ele � um vagabundo.

Amante de sua cidade, patriota do seu bairro, o carioca vai de som (na m�sica), vai de olho (� um paquerador incans�vel e tem um pesco�o que gira 360 graus), vai de olfato (o odor � de suprema import�ncia na fisiologia sexual do carioca).

Sem falar, que, em tudo, vai de esp�rito; digam o que disserem, o papo, inven��o carioca, ainda � o melhor do Brasil, incorporando as tend�ncias b�sicas do discurso nacional: o humanismo mineiro, o pragmatismo paulista, a verborragia baiana.

E basta ouvir pra ver que o nervo de todas as conversas cariocas, a do bar sofisticado como a do botequim pobre e sujo, por isso mesmo sofisticad�ssimo, a do living-room granfa, a da cama (antes e depois), � o humor, a cr�tica, a piada, a gra�a, o descontraimento. N�o h� deuses e nada � sagrado no Olimpo da sacanagem. O carioca �, antes de tudo, e acima de tudo, um l�dico. Ainda mais forte e mais otimista do que o homem da anedota cl�ssica que, atravessado de lado a lado por um punhal, dizia: "S� d�i quando eu rio", o carioca, envenenado pela polui��o, neurotizado pelo tr�fego, martirizado pela burocracia, esmagado pela economia, vai levando, defendido pela coura�a verbal do seu humor.

S� d�i quando ele n�o ri.

S� d�i quando ele n�o bate papo.

S� d�i quando ele n�o joga no bicho.

S� d�i quando ele n�o vai ao Maracan�.

S� d�i quando ele n�o samba.

S� d�i quando ele esquece toda essa folclorada acima, que lhe foi impingida anos a fio com o objetivo de torn�-lo objeto de turismo, e enfrenta a dura realidade... carioca.

Mill�r Fernandes � a figura encarnada do carioca. O "papa" do humor brasileiro fala de sua gente e de sua cidade.

Texto extra�do do livro "Que Pa�s � Este?", Editora N�rdica - Rio de Janeiro, 1978, p�g. 50.